Entrevista também aqui transcrita na integra:
«Em o Lugar d’Avós, romance de Carlos Amaral, somos convidados a escutar
memórias da sua infância, quando há quarenta anos foi passar férias à quinta do
Bispo, em Mangualde, bem como a estórias presentes nessas memórias: os ditos,
os contos, as adivinhas expressas pelos avós em jeito de música, de sons
próprios desse lugar. Essa música, juntamente com os bichos, com a natureza,
significaram afecto, atenção a uma criança que estava bastante privada deles em
Lisboa, sobretudo devido à austeridade do pai. Se aqui vivia em contenção, com
o interior reprimido, na quinta dos avós pelo contrário o interior encontrou
espaço, abertura para se exprimir.
A criança chega à quinta em
estado de sobressalto, dormindo com pesadelos, mas o afecto dos avós, a empatia
que transmitem fazem com que a tensão vá diminuindo, com que os sentimentos, as
emoções, mudas na casa dos pais, tenham aí oportunidade para fazer ouvir a sua
voz. É sobretudo através das estórias, contadas quase de forma contínua, que o
espaço de afecto se vai estabelecendo; que os sentimentos, a par com vários
ensinamentos morais, se vão misturando no ambiente da quinta, tornando-a ainda
mais um espaço de natureza.
O livro é um relembrar de episódios passados na quinta, de estórias que
eram aí contadas, os quais no entanto não correspondem já totalmente à verdade,
mas antes a qualquer coisa já alterada pela fantasia, pela liberdade de criar,
de condimentar a gosto. Recordam-se estórias, não no sentido de lhes ser fiel,
mas no sentido de reavivar certas emoções, de trazer para o presente uma certa
tranquilidade, uma certa confiança. Quase no fim, na página 224, lê-se o
seguinte:
“A locomotiva apitou, num adeus
agudo. De volta a Santa Apolónia, partia esperançado, pois as experiências e as
estórias amestraram-me no domínio da força interna, gerando o homem que pode
recorrer a filtros pessoais para resolver qualquer problema. Fiquei munido do
fio de prata da segurança, e, com o vigor próprio, enfrentei, daí em diante,
todo o minotauro. O novo trilho, descoberto no campo, orientou-me nas vias
descarriladas da vida urbana.”
Através das experiências e das estórias aprendeu-se a dominar a força
interna, a ser capaz de enfrentar a vida com mais confiança. Se a opressão, o
medo faziam com que se andasse tolhido, já o afecto, a atenção dada pelos avós
permitiu ter outra atitude perante a vida; foram, como se diz a certa altura,
“fonte da energia vital a brotar dos recônditos interiores, onde simbolicamente
edifico um abrigo pessoal.”
Perante as contrariedades, aquilo
que tende a deitar-nos abaixo, recorre-se a essas reservas de afecto guardadas
na memória, de modo a resistir-lhes. Aquilo que se viveu na quinta, a mudança
de um estado amedrontado para um estado de confiança, em que se “desligava o
interruptor da angústia, e ligava o da confiança. Mudava as emoções através das
estórias e descobria um sentido positivo para a vida.”, serve também para o
presente. Substitui-se um certo tipo de emoções, negativas, por outras,
positivas, e isso parece fazer toda a diferença.
As estórias nunca são muito longas, e a sua intensidade dramática é
variada, umas com mais, outras com menos. Fica-se com a ideia que não é tanto o
conteúdo das estórias que importa, mas sim o reviver de certas emoções, de uma
certa atmosfera a elas associada. O conteúdo, o contexto em que eram contadas,
tudo já mais ou menos alterado pela fantasia, parecem ser sobretudo ser um
veículo para que essa atmosfera apareça, para que ela venha de algum modo
influenciar o estado actual de quem conta.
Se recordar as estórias é
recordar as emoções associadas, não importa que elas não correspondam
exactamente à realidade. O importante, parece, é a sensação de liberdade que
elas trazem a quem conta. Nas páginas 218 e 219 pode ler-se:
“A voz protectora oferecia
segurança; o avô, pequenino, falava e o mundo despertava maravilhas. Estórias
recontadas, em cascatas, diluíam maus resíduos, transformadas por fim, essas
sugestões, em ambiente de agrado. Ultrapassei os receios no seio familiar, abri
a porta aos sonhos povoando a mente de encantos, de tesouros, de amigos gerados
na fantasia […] Entretanto, deliciado a magicar, abri portas aos mundos que me
libertaram […] No ecrã panorâmico da consciência, criava heróis e monstros,
envolvidos em lutas; recorrendo a palavras mágicas, originava imagens no reino
onírico, de onde nunca saí. Ou seja, sobre os elementos naturais à solta
pairava o meu espírito livre.”
Recordar as estórias parece ser estar a reviver esse “ambiente de
agrado”, indispensável para se deixar de andar tolhido, limitado, e se abrir
portas ao espírito livre, que no mundo da fantasia encontra plena margem para
se expressar.
Porém, liberdade para o próprio
não tem que significar prejuízo para os outros. Se por um lado se criava o
ambiente propício à libertação do espírito, por outro fazia-se perceber que
essa liberdade não devia ir além dos limites da decência. Nas páginas
seguintes, lê-se:
“O imaginário descontrolado
levava o devaneio à estafa […] Exagerei, manifestando uma certa loucura nas
palavras, gritos e correrias. Perante os olhos dos outros ia além do limite da
decência. Tinha espectadores que ficaram perturbados. […] Escutei os receios
deles, e senti o desespero, ouvi e aprendi a moderar os diálogos inventados.
[…] Na verdade, a imagem que temos de nós mesmos, inventada através da
imaginação, é tanto relevante, quanto a que formamos a partir dos actos.”
Ao mesmo tempo que davam afecto, os avós também punham limites.
Portanto, quando se recordam estórias está-se provavelmente a reviver tudo
isso: o afecto, as emoções positivas, mas também os limites, a decência
indispensável. Quando se diz que os tempos na quinta preparam para o futuro, e
que recordá-los ajuda a ultrapassar as contrariedades, está-se a reforçar esse
espírito temperado, a trazer esse tipo de energia para o presente.
Foi essa a sensação com que
fiquei; que se recontam estórias, não tanto por causa das estórias em si mesmas,
as quais muito provavelmente já nem correspondem ao que originalmente foi
contado, ou ao que originalmente foi experienciado na quinta, estando tudo isso
já mais ou menos alterado pela fantasia, mas sim por causa do bem-estar, do
tempero emocional que o evocar delas permite. São uma homenagem ao tempo
passado na quinta; aos avós, pela disponibilidade, pela “dose certa de afecto”
que “permitiu ultrapassar os receios, formando um Ulisses corajoso, de modo a
enfrentar os mares da vida, entre adversidades, alimentando a confiança para um
dia chegar a um porto renovado.”
No geral gostei de todas as estórias, ainda que, naturalmente, mais de
umas do que de outras. Por exemplo, gostei muito deste modo de dizer as coisas
(63-73):
“No musgo da pedra, a vedar a
poça, sentava-se uma jovem de catorze anos. Esguia sob túnica branca a
cobrir-lhe as formas, que brotavam da natureza para me estremecerem os
sentidos, ela brincava com ervas nos braços e nos pés, subindo-lhe aos joelhos.
Um regalo, enquanto não deu conta da minha presença, eu estava escondido por
uma coluna granítica, num patamar mais elevado.
Na moldura de ervas e arbustos, tranquila, a ditosa ninfa mirava-se no
reflexo da água. Imagem de rosto formoso, cabelo louro, olhos de um azul
celeste, cândido, envolvente. Quase não caí embevecido. Olhou-me a partir do
espelho de água. Uma descarga eléctrica percorreu-me a medula, partindo dos
seus olhos, semelhantes a janelas do céu a espreitarem-me.
Seria eu uma imagem encantada surgida na imagem da água?
Levantou o semblante, observou a periferia da poça até me perceber
pasmado. Recuou uns passos. À distância segura voltou-se para me fitar. Em
paixão, o céu daqueles olhos elevaram-me, estremeci zonzo e no brilho entrevi o
ribombar do amor. Ela sorriu, ciente do seu poder sobre mim, deu uma risadinha,
abalando em salto de corsa.
[…]
Perguntei se a condição da avó seria de condessa – que interessava de
quem era filha, desejava apenas voltar a revê-la. Nervoso, percorri as
fronteiras da quinta, vislumbrei-a ao longe, nos serros a guardar o rebanho de
cabras – daí a piada da Constança.
Em rigor, esse amor provocou-me um apagão na memória. Fiquei
desassossegado, sem dormir, nem sabia já quem era. A sua imagem campestre
perseguia-me nos sonhos à maneira de uma bacante – seria eu o cordeiro imolado
nos seus braços?
Acordei absorto no ambiente sentimental e passei pelo lugar do encontro.
Escondi-me atrás do caniçal. Palmas para a actriz! De maneira que pressentira,
ela apareceu, a mirar a vereda que levava à casa da quinta. Nesse dia
escaldante, ela aproveitou o apelo do Verão e molhou os pés, fruindo um choque
térmico agradável. Esboçou tirar o vestido, mas uma apreensão travou-lhe o
gesto. Deslizou e afundou-se na água da poça, mergulhou no líquido fresco a
chapinhar, espantando a passarada, que levantou voo, em alvoroço.
Junto ao canavial, onde deixara o cesto, fui depositar uma rosa, que
colhera no roseiral da avó. Escondi-me sem ser detectado. Entretanto,
satisfeita com o banho, em câmara lenta, a jovem, a escorrer saiu da água. O
vestido colou-se ao corpo na extensão da pele. Vi-lhe o contorno redondo das
pernas, os pêlos púbicos num ninho desfeito, a cintura delgada, os pequenos
seios firmes, tais tangerinas plenas de frescura, o pescoço de garça e o cabelo
corrido num véu de ouro húmido.
– É mesmo linda! – Dizia eu, entre dentes.
Nunca imaginara que uma rapariga despertasse tanta emoção.
Saiu do açude, com as pernas mais
belas que colunas gregas. Pulou para o meio do relvado, torceu o cabelo e o
vestido, sem o retirar do corpo. Em passo firme dirigiu-se para a cesta.
Espantada contemplou a rosa, junto à merenda; logo fitou todas as direcções,
desconfiada. Serenou. Pegou na rosa e aspirou-a, como se absorvesse o odor do
mundo. Retirou-se, majestosa, com as mãos e a rosa a ocultarem zona púbica.
Fiquei cheio de raiva por não lhe ter saído ao caminho, do jeito que
tinha previsto, para lhe confessar o amor. Estava seguro, havia de voltar em
breve e iniciaríamos um contacto pessoal.
[…]
Entretanto, nós os pequenos amantes em xeque escondidos, encontrámo-nos
no limiar próximo da mata, onde o avô edificara a cabana de colmo, que nos
protegia entre os fardos de feno. Esperávamos por melhores horas e por um final
menos conflituoso. Adélia fungava, as lágrimas corriam-lhe pelo rosto,
dando-lhe a candura que atiçava o desejo.
Queria convencer-me de que a aventura apenas começara:
– Foge comigo, vamos percorrer o mundo.
– Não posso, há-de haver outra solução.
– Falta-me a coragem para encarar a minha mãe.
– Que faríamos para nos mantermos, pois nem roupa temos?
Afinal, reparávamos na nossa nudez e, atingidos pelo pudor, tapávamos
com as mãos as partes íntimas.
– Não és homem, não és nada, se recusares vir comigo.
– Homem ainda não sou, mas hei-de o ser.
– Desistes então?
– Virei buscar-te depois, Adélia.
– Ou é do jeito que eu quero ou nunca mais me tornarás a ver.
– Jamais deixaria os avós preocupados.
– Gostas mais deles do que de mim?
– Trata-se de gostos diferentes.
– Menino do avô, não quero nada contigo, és um fraquito!
Com a decisão tomada, ela ergueu-se, desaparecendo, de corpo nu a
ondular na paisagem. Gritei de modo a vê-la nos olhos uma última vez, mas era
definitiva a resolução. Ignoro se devido à sua vontade ou à da mãe, ou a outra
causa estranha, mas nunca mais nos dias da minha vida voltei a contemplar essa
namorada.”;
Ao contrário do que por vezes senti noutros casos, quando atento nas
duas primeiras partes desta estória parece que aquilo está ali, que o que está
a ser dito me toca de uma certa maneira; não me parece ser algo longínquo, mas
uma experiência que se está a desenrolar ali, e na qual eu posso participar de
algum modo: a atracção do jovem pela moça junto à água; o olhar sorrateiro,
cheio de desejo mas também receoso; o querer contido, que não é só da parte
dele mas também é da parte dela, que se banha e se expõe sabendo estar a ser
observada, sabendo que quem a observa sabe que ela está a ser observada e finge
não estar. Os detalhes, os pormenores físicos, comportamentais, paisagísticos;
a forma como tudo isso é conjugado nas palavras faz com que a estória tenha
muita vida. A sensualidade, associada a um certo recato, a uma certa inocência;
o desejo das formas corporais, entretido na brincadeira com as ervas nos braços
e nos pés; os olhares indirectos, descobertos no reflexo da água, que depois se
tornam directos, intensificando gradualmente a proximidade dos amantes. Há um
certo fingimento, a exploração da magia de um certo momento, de um sentimento,
de uma sensualidade contida: “Olhou-me a partir do espelho da água […] Levantou
o semblante, observou a periferia até me perceber pasmado. Recuou uns passos
[…] Esboçou tirar o vestido, mas uma apreensão travou-lhe o gesto […]
Entretanto, satisfeita com o banho, em câmara lenta, a jovem, a escorrer saiu
da água […] Espantada, contemplou a rosa, junto à merenda; logo fitou em todas
as direcções, desconfiada. Serenou."
Já na última parte dessa estória,
a contenção parece vir do outro lado, sugerindo uma certa maturidade, um certo
crescimento: “ – Foge comigo, vamos percorrer o mundo. – Não posso, há de haver
outra solução.” […] “ – Ou é do jeito que eu quero ou nunca mais me tornarás a
ver. – Jamais deixaria os avós preocupados. – Gostas mais deles do que de mim?
– Trata-se de gostos diferentes.”
Ao mesmo tempo que há uma atracção, uma paixão quase irresistível pela
jovem, há também uma noção mais lata, mais afastada das coisas. “Trata-se de
gostos diferentes.” Não se misturam as coisas; a paixão pela moça é forte, mas
não o faz perder a sensatez, não o faz passar por cima das coisas de qualquer
maneira.
Penso que desta forma se está
ainda a falar daquele espirito temperado referido acima, mas só que agora através
de uma perspectiva mais próxima, evocando sentimentos, reacções, comportamentos
que de alguma forma foram vividos na quinta. Na minha experiência enquanto
leitor não foi a mesma coisa ler que:
“No ecrã panorâmico da
consciência, criava heróis e monstros, envolvidos em lutas; recorrendo a
palavras mágicas, originava imagens no reino onírico, de onde nunca saí. Ou
seja, sobre os elementos naturais à solta pairava o meu espírito livre.”,
e depois que:
“Exagerei, manifestando uma certa
loucura nas palavras, gritos e correrias. Perante os olhos dos outros ia além
do limite da decência. Tinha espectadores que ficaram perturbados. […] Escutei
os receios deles, e senti o desespero, ouvi e aprendi a moderar os diálogos
inventados.”,
ou por outro lado ter lido essa
pequena estória. Enquanto no primeiro caso senti uma descrição das coisas, um
apontar para elas, no segundo senti essas coisas de uma forma mais próxima, e
também ao mesmo tempo um convite a participar nelas. Um pouco como a nossa
relação com certas coisas, em que só as percebemos depois de as
experienciarmos.
Penso que há uma diferença entre essas duas maneiras de falar sobre as
memórias, e que é na última que o “reviver” tem mais sentido. Como leitor não
podia é claro revivê-las, mas por outro lado também não queria estar como um
estranho. Queria ir um pouco a esse mundo, partilhar um pouco dessas
experiências em Mangualde, e foi em momentos como os dessa estória que me senti
mais próximo disso.
Quando mesmo no final do livro se
diz: “Mesmo quem não viveu, que tenha experimentado connosco e, em paralelo,
haja sentido as próprias memórias…”, sinto que isso é mais assim quando aquilo
que leio é algo diferente desses momentos. Como não encontro nisso o que
encontro nessas estórias, ao tentar transportar-me um pouco para essas férias
em Mangualde acabo afinal por estar a recorrer apenas a coisas minhas, a coisas
da minha imaginação. Para tentar compreender um pouco essas férias eu preciso
de sentir o que isso foi, de perceber o que foi essa realidade, e é por isso
que gosto mais das estórias que de alguma forma me transmitem isso, que me
convidam a entrar, a participar nelas. Creio que só desta forma consigo chegar
mais perto do outro, compreendê-lo um pouco melhor, e assim contrariar a
tendência de estar fora, apenas a emitir opiniões da minha cabeça.
Um muito obrigado ao Carlos por
esses momentos de leitura. Foi um prazer lê-los!
Como é que nos podes apresentar o
teu romance. É um pouco como um livro de memórias, um episódio autobiográfico,
ou para ti isso tem pouca importância?
Não é relevante, classificá-lo
enquanto episódio autobiográfico e de memória, pois tal evocação contém um
claro propósito estético. Ou seja, o interesse reside no processo como lhes
acedo (…à autobiográfico e às memórias). Necessitei de encontrar um ritmo
interno na narrativa, quase próximo do ritmo de embalar, remetendo para emoções
revisitadas. Por outro lado, esta obra pretende acolher o tempo atual da
abordagem de qualquer leitor.
Logo nas primeiras páginas é
enunciado de forma clara o objectivo de através do conto de uma estória voltar
atrás no tempo, às memórias de infância, pondo-se como condição para isso a
sedução da memória. Qual é para ti a relação entre contar uma história e
seduzir a memória?
Contar uma estória, narrando-a
por escrito, passa pela evocação daquilo que a memória consegue apresentar… Mas
a memória necessita de ser aliciada de forma a surpreender-nos criativamente,
através da imaginação, trazendo algo inusitado. Portanto, as memórias contêm
muito mais do que aquilo nos conseguimos recordar… essa mais-valia excedentária
é o trabalho da dita sedução.
Podemos dizer que o Lugar d’Avós
tem um carácter confessional, ainda que esbatido pelas estórias?
Confesso que quis retornar a uma
época difícil para mim, enquanto personagem infantil. Confesso que pretendi
restaurar um tempo perdido. Confesso que desejei prestar uma homenagem a algo
que representa um espaço e um tempo idílicos. Confesso que esgaravatei: no
telhado do forno do pão, na lembrança, nas emoções vivas e nas dores de
crescimento.
Diz-se na obra que a “dose certa
de afecto” dada pelos avós permitiu alcançar o equilíbrio emocional. Quando se
cresce com afecto a mais ou afecto a menos está-se mais sujeito ao
desequilíbrio?
O afeto quer-se com peso, conta e
medida – como uma aritmética das emoções – o que de algum modo é paradoxal.
Mas, no que envolve a componente educacional, esse equilíbrio é necessário,
pois o excesso e a carência são defeitos, como já detetara Aristóteles (Ética a
Nicómaco). Ou seja, a carência deixa uma brecha de descontentamento na formação
do indivíduo. E o excesso também estraga, pois, é necessário um âmbito de
desejo, para tornar o sujeito ativo na resolução dos seus problemas.
Também se diz que as estórias
contadas pelos avós proporcionam a libertação da alegria, e pouco depois que a
embriaguez, apesar de também nos proporcionar algum gozo, é no entanto algo que
nos faz perder o controlo. Quer isto dizer que nas estórias, ao contrário da
embriaguez, a par da alegria e da libertação há também algum controlo?
A embriaguez narrada em Lugar
d’Avós foi bem real. O Avô queria que eu fortalecesse com gemadas de ovo
misturadas com vinho e açúcar – as sopas de cavalo cansado foram um coquetel
fortíssimo para a criança! Abriu o espaço do caos e do descontrole. Todavia,
nas estórias contadas há um auto controle, que está a ser desenvolvido no
personagem e transferido para o ouvinte/leitor, pois no espaço de narrativa o
significado estabelece-se em simultâneo. É como se nesse fio condutor se
criasse um nexo interior que lhe traz redobrado significado. A estória pode ser
esse botão que faz despertar um alvoroço, ou até o gérmen que conduz ao
controle pessoal. Na estória inventa-se um novo significado, que traz a alegria,
inerente ao domínio de si.
A certa altura refere-se que a
escola tanto nos fornece ferramentas para quebrarmos as convenções, como nos
incute e formata ela própria no seio doutras convenções. Achas que as
convenções são de todo desnecessárias?
As convenções são necessárias
quando estipulam algo aceitável. Facilitam a vida se forem plásticas, abrindo
portas à transformação, segundo os propósitos internos para o desenvolvimento
de cada qual. Por exemplo, na vida escolar as convenções lucidas evitam muitos
conflitos desnecessários e dão orientação e segurança aos jovens e às crianças.
A infância do avô também foi
marcada pela falta de carinho, por influências que equiparavam a grandeza do
homem à grandeza material que se possuía; e no entanto, apesar das suas
imperfeições, ele não deixa de cultivar a dignidade. Não se pode admitir alguma
ligação entre a convenção e a dignidade?
Algumas convenções da tradição
social, que estipulam o exercício dos poderes e a distribuição dos bens, que
não estão franqueados a qualquer um, retiram, logo à partida, a dignidade a
quem quer progredir ou ascender na escada social. Logo, há uma dignidade
autêntica, de quem conquista um lugar no mundo, combatendo uma falsa dignidade
imposta, por exemplo, por determinada classe social para excluir os outros
através de um artifício e de um poder.
Pergunta-se a certa altura se o
preconceito do avô acerca das mulheres não é fruto de um secreto mal-estar de
amor, se isso não traz chumbo na asa; e diz-se que apesar dos devaneios ele
continua ainda a abrigar no peito a imagem da pureza íntima. Estamos a falar de
um personagem romântico?
O avô Bispo é mais um
utilitarista do que um romântico. Não obstante, ele entende que na formação de
um adolescente o romantismo tem um papel relevante no seu crescimento.
E há alguma relação entre isso e
o que se diz depois, a propósito do estigma social de que são vítimas as
mulheres?
O avô tem um senso de justiça no
que envolve a desigualdade de géneros, compreendendo que numa sociedade
machista rapidamente se atinge um domínio do homem e logo desculpam-se alguns
violadores e poderosos que roubam a dignidade à mulher e aos seres mais frágeis.
Às tantas diz-se que o avô teve
de ir para a quinta, de modo a não ser dominado pelos impulsos que o levavam a
procurar amantes, e que a avó também resiste ao mesmo tipo de pulsão através do
trabalho incessante, o qual ela diz ser fraqueza feita força. Achas que
mantermo-nos ocupados com coisas nos ajuda a manter certos impulsos sob
controlo?
Os impulsos são a fonte de
bastantes ações humanas. Logo, apenas os impulsos que nos distraem do que
queremos ser, devem ser mantidos sob controlo. Portanto, a quinta representou
uma espécie de exílio, que inibiu alguns impulsos semelhantes a ervas daninhas…
A dada altura refere-se o enorme
gozo sentido com estórias em que se relatam sofrimentos alheios, e que isso é
uma grande contradição humana. Como é que um gozo sentido por um ser humano pode
ser uma contradição humana?
Na verdade, um gozo que tenha por
alvo o sofrimento alheio não é um gozo ético. À semelhança, os romanos que se
divertiam com o sofrimento dos outros no circo, aos olhos do meu Bispo seriam
grosseiros e pouco digno de quem os pratica. Embora a piedade também não fosse
por ele bem vista, por destruir a formação da força do carácter, pois
necessitamos da dose certa de sofrimento homeopático.
A pouco mais de meio do livro, há
um episódio em que se equipara o gosto pelas qualidades de uma pessoa ao gosto
do sal na comida: não se quer nem insossa nem salgada, mas sim temperada. Quer
dizer que na vida tanto a carência como o excesso de certas características
pode ser prejudicial para a saúde?
Mais uma vez o equilíbrio. O
gosto está aí. O excesso e a carência de sal tornam o conduto da vida pouco
apetecíveis.
Há um momento em que se alude à
conversa, à brincadeira, aos jogos, aos contos, e se refere a ligação destas
coisas à terra dos afectos. São estas coisas que permitem que venham mais
facilmente à superfície certos sentimentos?
Os jogos, brincadeiras e as
estórias implicam atividades lúdicas que libertam e aligeiram, quebrando a
rigidez presente na educação paterna. Assim liberto, chegam à superfície outros
afetos que não o medo…
Quando se diz: “No ambiente
rural, esqueci os citadinos sofrimentos da vida familiar – tal desordem era
demasiada carga para um menino.”, isso significa que esses sofrimentos estão
relacionados com uma certa desordem, e que a cidade é mais propícia a essa desordem
do que o ambiente rural?
No âmbito rural tudo é feito à
escala do ser humano; nas grandes urbes, ao invés, o ser humano pode ter outras
possibilidades, mas perde a integração afetiva e intuitiva no ambiente global –
há, por vezes, na cidade um afastamento de uma natureza humana.
Tem isso a ver com a pressa, com
o movimento compulsivo, com “uma extravagância semelhante à do coelho da Alice
em corrida contra-relógio no país das maravilhas.”?
Submetendo-se ao toque do
contrarrelógio de facto torna tudo antinatural, artificial fazendo-nos andar
atrás das horas e da rolha, ou seja, andamos a ver passar os comboios, pois,
sob esse ritmo nada parece ter genuíno significado. Na urbe há um ritmo que
raramente é o do coração e dos afetos.
Pode-se dizer então que em Lugar
d’ Avós não são só importantes as relações familiares, mas que também está presente
uma geografia dos afectos?
A geografia dos afetos recai
sobre a beira alta (a terra do protagonista). Mas é, sobretudo, um espaço
interior que necessita de ser cartografado para melhor nele poder navegar, pelo
oceano de carvalhos e pinheiros que ladeavam a quinta beirã. Contudo, pelo
facto de já pertencerem ao reino do jamais (devido à ação dos mineiros do
uranio que destruíram aquela paisagem idílica), tal levou-me a revivê-la
através do campo da imaginação, permitindo que na atualidade a continue a
percorrer com um deslumbramento utópico.
O livro tem 22 capítulos.
Levou-te muito tempo a lembrar as várias estórias que neles vais contando;
houve umas que foram puxando outras; ou já tinhas tudo bem presente na memória?
Perguntas, onde gerei o novelo
que me levou a recontar as estórias? Tal encontra-se na lista de tópicos, que
registei quando frequentava a universidade (1981-85), com o fito de preservar
para memória futura. Mais recentemente, depois de me debruçar em cada um desses
pontos, brevíssimos novelos a partir dos quais desenrolei as restantes meadas
da narrativa, com o auxílio precioso da imaginação. Ao buscar a unidade e a
coerência tive que inventar outras estórias… Em cada um dos 22 capítulos há
dupla unidade, uma que remete para a globalidade da obra, outra interna, como
se em cada capítulo se gerasse um arquipélago de novas estórias insólitas que
se atam às outras.
Um pouco mais à frente, ao falar
de educação, alude-se a um meio-termo entre a excessiva severidade e a
excessiva permissividade; à arte de introduzir alguém na mestria e domínio de
si e do mundo. Tem isto alguma coisa a ver com a desordem referida há pouco?
A arte do domínio de si mesmo foi
uma das sabedorias que adquiri no convívio com os avós. Para isso, não podemos
ser domados pelo medo, insegurança e tristeza prolongada, mas também não
podemos ser amolecidos por afetos moles que nos retirem a têmpera.
É dito que o pai é severo por
causa da vida dura que teve, e que no entanto ele entende estar a fazer a coisa
certa, preparando os filhos para as dificuldades da vida. Parece existir aqui
um reflexo cultural, em que aquilo em que nos tornamos é determinado pelo nosso
passado.
Também é dito que a solução para
isto está na imaginação, pela qual podemos derrotar a influência castradora
através da fantasia, dos sonhos acordados. Não há no entanto o perigo de com
isto ficarmos alheados da realidade, absorvidos num mundo de “maravilhas”?
Havia uma necessidade premente do
meu pai em fazer-nos “crescer” e inserir no “mundo real”, ao qual se
subalternizava qualquer satisfação. Essa severidade matava a vivência afetiva,
natural num ser em crescimento. O delírio do imaginário infanto-juvenil
traduzia a possibilidade de encontrar alguma felicidade através do recurso à
imaginação, a qual não é forreta a satisfazer esse mundo infantil e da
puberdade.
Em todos os capítulos há uma
gravura do pintor Paulo Medeiros, que funciona de algum modo como uma tradução
da tua imaginação, assim como a tua imaginação funciona de algum modo como uma
tradução dessa tua satisfação afectiva. No entanto, por mais fiel que possa
ser, parece que pelo menos a respeito de coisas profundas há sempre alguma
coisa que escapa ao sentido de qualquer tradução…
As imagens do pintor Paulo
Medeiros ilustram cada capítulo de Lugar d’Avós de um modo singelo, mas ao
mesmo tempo criativo. Ele selecionou e acrescentou a sua visão da obra.
Encontrou um modo de dar uma dimensão visual aos diferentes capítulos. Se foi
além, ou ficou aquém, que interessa? O diálogo entre artes distintas compensa
devido à fecundidade. As gravuras revelam uma linguagem artística diferente,
que a par da peça de teatro, baseada no mesmo argumento, representam modos de
abrir a obra a públicos distintos. Interessa que esses diálogos não acabem,
desse modo, o romance vai estimulando a sensibilidade artística, que se
manifestará como abertura do ser humano às suas intermináveis dimensões.
Diz-se mesmo no final que as
evocações nesta obra fizeram reviver memórias, e que se espera que o leitor ao
lê-la também seja capaz de reviver as suas. É necessário alguma atitude
específica do leitor para que isso aconteça, e tem a própria obra alguma
influência nisso?
A obra, Lugar d’Avós, franqueia o
retorno ao passado, pretende REVIVER. Acaba por ser contagiante, pois, ao
mostrar a viabilidade terapêutica, é como se criasse uma ponte de acesso à
felicidade de cada qual no seu retorno ao passado vivido por si mesmo. Contudo,
tal género de chaves técnicas não são, nem devem ser dadas de modo artificial,
pois isso poderia introduzir equívocos graves. Na verdade, o que foi
terapêutico para mim pode ser venenoso e tóxico para outro ser (mais ou menos sob
as mesmas circunstâncias). Se, por exemplo, o acesso ao passado representou a
reabertura de feridas que já estavam saradas. Em certo caso, a obra de arte
(romance) é insuficiente para estabelecer esse percurso. Nessa circunstância
anómala, torna-se necessário um apoio clinico especializado no âmbito da saúde
mental. Ora, não se tratando desses casos, ficam abertos outros mundos, onde
uma espécie de ternura, parecida com a que é veiculada nas estórias populares,
ou nas literárias que podem facultar o acesso ao plano histórico do interior do
próprio leitor...
Sei que também escreves poesia, e
que estás ligado ao teatro, como dramaturgo, encenador, e até actor. Utilizas
todas essas formas de arte como veículo para o percurso que referiste?
Na redação final de Lugar d’Avós
manifestam-se as inspirações das outras artes que exerço, pois quer nos
diálogos, quer na criação das personagens está presente a vertente cénica.
Quanto à poesia, inolvidavelmente, ela envia-nos para o lirismo que atravessa a
obra. Não quis ser prosaico! Pretendi aproveitar esse lugar das emoções
imaculado, que deriva da poesia das sensações, e que transbordaram em afetos
reparadores. E, assim, pretendi encontrar um veículo de comunicação com o âmago
de cada leitor em particular.
Queres terminar com uma breve
nota sobre o estilo da tua escrita nesta obra?
O estilo de Lugar d’Avos é
cuidado como o do ritmo da mão que embala o berço. Nessa cadência vou em
demanda da narrativa, num fluxo de metáforas e outras figuras de estilo. Quis
cuidar da palavra criativa, que me reafecta e me transporta ao íntimo do
imaginário pessoal e colectivo.»