domingo, 6 de março de 2022

 

 

In Contos Liliputianos, de Carlos A. Couto Amaral (no prelo)

O homem é o lobo do próprio homem – HOBBES (que imitou PLAUTO)

 

Carta aberta do lobo:

Caro Hobbes, ao afirmares que o homem é o lobo do próprio homem, espero que tenhas investigado o que pensam os lobos do assunto. Sentimo-nos ofendidos com a comparação. Os homens pensam que conto acontecimentos remotos de quando o homem dançava com os lobos.

Recordar que, no século XX, morreram mais homens nas guerras do que na restante história. É falsa a noção que a humanidade tem de si própria, acreditando que quanto mais ‘civilizada’, melhor se torna. É de lastimar a cegueira acerca de si própria. Sabias que, na alcateia, apenas acidentalmente um lobo mata outro lobo?

A máxima de Diógenes, o cínico, quanto mais conheço o homem mais gosto do meu cão, apela à amizade do fiel amigo. O cão é nosso parente, servil. O que nos distingue desde a narrativa é o facto de nós os lobos, preferirmos ficar esfomeados, mas sem a coleira ao pescoço. O homem só estima o que domina.

O lobo nunca compreendeu as contradições de se estar descontente ‘consigo’, ou com os iguais, talvez os pruridos poéticos sejam a vossa diferença. Os humanos conseguem ser díspares, apesar de existirem alguns que se acham mais diferentes dos outros, ou os que se acham mais iguais que todos. O homem tem a aprender com o que o assemelha e o diferencia, não queremos confusões, nem perder a identidade.

Se o homem fosse consciente das dimensões agressivas, abandonaria as imagens angelicais, repletas de moralismos (não estou a falar da ética que dignificam). Perceberiam que a agressividade sublimada gera a arte, o autodomínio, a estima, o respeito e a solidariedade. Encontremos um habitat, onde se sinta melhor, um ethos que origina a ética e representa o espaço familiar em que vos sentireis bem convosco, com os outros, com o cão, e porque não, com o lobo!

Assina: O lobo na toca do homem.

(A Filosofia do ponto de vista dos Animais, da editorial Floresta Queimada).

P.S. Eu e a bicharada deixamos um apelo: QUEREMOS CONFIAR NO HOMEM! SERÁ QUE PODEMOS CONTAR CONTIGO? Caso contrário, estamos tramados! E duvidamos que o Noé, velho como se encontra, tenha paciência para fazer outra arca, salvadora da bicharada e da humanidade, - o homem faz os disparates e todos arcamos com as consequências.

 

sábado, 24 de julho de 2021

ENTREVISTA DO LUÍS ASCENÇÃO - blog oserimperfeito

 



1. O que é que o seu avô representa para si?

 Convém referir que há uma diferença notória entre a personagem literária e o homem real com o qual convivi. Um centra-se sobre a imagem de traços que são de algum modo exagerados. A pessoa real está marcada pelos vícios e virtudes de um ser humano real. Em Lugar d’Avós o ‘Bispo’ é uma representação ficcional, que destaca o papel do avô-bom – tentei reporta-me à criança de onze anos e não ao homem de sessenta e um anos, que sou hoje. Sei distinguir a personagem que reinventei face à “personagem real”, tal como ele se me apresentou. No livro fui sincero em relação ao que vivi, já no que se refere a António do Couto, o meu modelo… Não sou tão perentório, até por achar que ele tinha dimensões morais, que correspondiam à “flor que não se devia cheirar”. Não obstante, para a criança que fui, o que escrevo em Lugar d’Avós é autêntico: essa personagem representou o mediador, que me permitiu libertar-me e emancipar-me face ao claustrofóbico mundo paterno. 


2. Que sonhos tinha nessa época em que era o “falinhas mansas”? 

 Os sonhos eram incomensuráveis e indescritíveis. Eu sonhava desde que acordava até adormecer. Nesse caso, chegavam outros sonhos por vezes inquietos. Estar em devaneio nos sonhos diurnos era um modo de me projetar no mundo. Representava os mil heróis, das personagens que viviam em delírios intermináveis, uns substituíam os outros, de modo a descansar daqueles que me deixavam exaurido. O que o mundo real negava ou sonegava encontrava a compensação no devaneio. Recordo que sonhava sobre as idades futuras para realizar as aspirações infantis. A fragilidade ganhava asas noutra constelação onde se realizava o prazer e o poder – coisas da fantasia. 


 3. O seu pai era um homem autoritário, ter-lhe-ia partido as asas pelo caminho? 

De facto o meu pai era autoritário, ele exercia o papel e estatuto do ditador de trazer por casa. Embora na luta contra ele se tenha partido alguma asa da ilusão; ganhei, em contrapartida, as armaduras da realidade. A vontade de vencer, de sobreviver, e de me afirmar marcavam-me a fogo. Quando alguém nos quer negar, se nos conseguimos recompor, de certo modo, encontramos a energia interior. O papel do avô foi auxiliar-me a restituir a vontade de vencer, ao mostrar-me que existiam outros mundos alternativos, para lá do que psicoticamente o mundo do pai apresentava-se como único. Todavia, era um homem inteligente. Sabia que naquele mundo para um ser singrar era necessário tornar-se um lutador. Creio que, voluntariamente, ele fez de mim um lutador incansável. Andaria eu pelos dezanove anos quando o confrontei com a educação que me dera, e a sua resposta foi credível: “Fiz o melhor que sabia e que podia em relação à tua educação. Mas agora és crescido, podes fazer de ti o que bem entenderes!”. Ou seja, o seu princípio e fundo não eram maus. Os valores pedagógicos que o norteavam eram bastante diferentes dos atuais. E quem terá a razão definitiva nessa área tão incerta?

4. Que papel teve esse mundo agressivo no processo do seu desenvolvimento? 

 Teve um papel enorme. Primeiro, fragilizou-me, quase me destruiu. Depois, tornou-se numa escola de evolução rápida: com 20 anos eu já trabalhava e tinha autonomia financeira, sabia que não podia contar com o apoio que não fosse o que conquistasse, ou o que buscasse noutras paragens. Varreu qualquer imagem de dependência ou de ilusória segurança. Descobri que apenas podia contar comigo, teria que me empenhar. Aprendi rapidamente! Se não o tivesse feito teria sucumbido ou teria amochado perante aquele progenitor, que me infernizara. Das últimas conversas que tive com ele, antes de falecer (com uma embolia cerebral), confessou que tinha orgulho em mim, pois contra todas as expetativas eu tinha triunfado, tornara-me um verdeiro homem. Terminara o curso sem qualquer auxílio seu, fizera a tropa… enfim, sabia lutar por mim mesmo. 

 5. Que efeitos psicológicos teve esse ambiente agressivo no processo de amadurecimento? 

Os efeitos psicológicos no adolescente foram brutais. Fragilizou-me. Num segundo momento, levou-me a sentir que eu apenas tinha a alternativa de ultrapassar esse ambiente conquistando a autonomia. Uma das quezílias frontais foi quando me ameaçou que me colocava na rua se eu não me submetesse a ajudá-lo numa propriedade agrária, quando eu tinha marcada uma reunião do grupo de arqueologia, que ajudara a fundar. Arrisquei tudo, não me submetendo à sua ameaça e comecei a realizar os meus projetos de vida. Não me queria submeter e ser a imagem do papel que me reservava de joguete para os seus sonhos. Descobri que era mais forte do que me imaginara, aí vencia. Ele não me colocou na rua e passei a fazer paralelamente o processo de autonomização. 

 6. Que emoções lhe foram dadas a viver quando recebeu a notícia da morte do seu avô? 

Senti logo a perda de um mundo! E que o meu universo não seria igual ao anterior. Sofri a desolação e a impotência, mas ao mesmo tempo a aceitação de outra lei básica da vida: somos frágeis enquanto seres vivos. Desmoronaram ilusões, ao mesmo tempo para contrariar: surgem desejos urgentes de realizar os projetos fundamentais da vida. 

7. Lembra-se do ano quando foi desapropriada a quinta? Qual o estado de espírito? 

 Creio que foi em 1977 que a quinta foi finalmente desapropriada. Os meus avós já a tinham “abandonado”, devido à idade avançada foram viver para Cubos. Senti que os paraísos existem e que as instituições os podem desfazer através de uma ordem soberana. A Quinta do Bispo detinha uma enorme jazida de urânio. O pai e o tio, por outro lado, tinham interesses em que aquele mundo fosse desfeito. Queriam rentabilizar, pois através do capital recebido devido às indeminizações realizariam certos sonhos. Eu e o meu irmão sentíamos que nos cortavam as entranhas da alma. E assim desaparecera o paraíso! Segui o esventramento da terra, visitava com regularidade a quinta, quando ia de férias à Beira Alta. A curiosidade era saber como era constituído o ventre do mundo. Porém, o sentimento era de desolação, posto que os anéis do inferno surgiram onde estivera o éden. Para mais o produto extraído, o urânio, alimentava a indústria bélica das bombas atómicas. 

8. Há uma questão que coloca no livro: “por que não deixaram puro aquele paraíso?”. Não acha viável a exploração mineira em favor do desenvolvimento económico do país e da região, no caso, da Beira Alta? 

Apesar de não ter uma visão ingénua do mundo, acredito que o narrador literário tem o absoluto direito em tê-la. Posso entender que para a maioria poder sonhar, outros verão os seus sonhos destruídos. No entanto, esse paraíso foi desfeito por interesses que não acho sustentáveis, dado que a exploração mineira foi efetuada em favor do desenvolvimento do poderio atómico, que nem beneficiava o país nem o mundo. Logo, também não serviram as populações locais. Serviram apenas o estado que durante mais de uma década retirou milhares de toneladas de urânio, que contribuíram para atenuar a dívida externa. Todavia, esse foi um primeiro passo de uma escalada de industrialização à volta, surgiu a SIAFE, uma fábrica gigantesca de conglomerados de madeira; um mega ferro-velho… Algumas empresas justificam-se por empregarem as populações, mas serão razões suficientes para levarem a uma inquietante degradação ambiental? 

9. Quando começa a dedicar-se à escrita? Que papel desempenhou na construção da sua pessoa?

 Comecei a dedicar-me à escrita autodidata aos doze anos – escrevia poemas num caderno pautado; no início da adolescência comecei a redigir um diário que praticamente nunca abandonei. A escrita e a construção da minha pessoa são inseparáveis. Lavrei 240 cadernos de diários. Seria eu o mesmo sem essas referências quotidianas ao modo de me sentir e pensar? Claramente que NÃO! Ainda hoje sinto, quando fico um dia sem escrever, parece que o meu ser fica confuso e baço. Um dos próximos projetos literários a concretizar implica a edição de parte do meu diário, com o título: Dias a Menos. Trata-se de um diário romanceado, que percorre os anos que vão de 1983 a 2000. Em boa parte sou o ser que se vai revelando na escrita. Como disse um dos meus editores “é uma escrita redigida a sangue”. 

 10. Ainda se lembra do ano em que a quinta do seu avô é restituída à sua família? 

A informação que tenho é 2011. A Quinta do Bispo foi várias vezes prometida, mas quanto à sua restituição parece difícil, se não inviável, pois nem conseguiram ainda concluir a reabilitação ambiental… Já não acredito que nos seja devolvida. O tempo dos sonhos não volta atrás, e o eterno retorno não passa de um mito consolador

sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

Teatro: DIAS A MENOS



















MAIS uma vez, o meu Amigo Carlos Amaral apresenta o seu trabalho no GITT - Grupo de Iniciação Teatral da Trafaria, nas instalações de "Recreios Desportivos da Trafaria".
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Uma vez por ano, Carlos Amaral apresenta uma peça de sua autoria. De há uns 12 anos para cá, Carlos Amaral, num trabalho de persistência e devoção - ou, se preferirmos, num exemplo de verdadeiro Amor à Arte - apresenta o seu trabalho, sendo ele não só o autor das peças, mas também o encenador e ensaiador.
No entanto, apesar de muito apreciar os seus textos, para mim, sobressai a capacidade inventiva das encenações! Estas revelam um completo trabalho de criação, tanto mais notável quanto são reduzidos os meios de que dispõe!
Carlos Amaral é um daqueles exemplos que fazem jus ao provérbio que tantas vezes ouvi à minha professora da Primária - "Mais faz quem quer, do que quem pode"!
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Desta vez, a peça intitula-se "Dias a Menos".
É um texto que surpreende o espectador porque foge aos cânones habituais do Teatro, tratando-se de uma reflexão muito interessante sobre a existência e as relações, possíveis ou não...
Além disso, a peça é a ante-câmara para o próximo romance do Autor, o qual terá o mesmo título, "Dias a Menos".
.Myriam Jubilot de Carvalho

terça-feira, 7 de maio de 2019



Entrevista que me foi efetuada por CARLOS ALMEIDA

da revista ANIM’ARTE, número 111, 2019.



1.       Poesia Versus prosa:

A poesia e a prosa são distintas apenas enquanto géneros literários, que expressam dimensões diferenciadas do ser. No entanto, que seria da prosa sem a criatividade poética que também a deve estruturar e enervar. Prosa não é sinonimo de prosaico. Mas, enquanto a minha prosa se submete mais à narrativa, já a poesia reinventa o uso da linguagem. Prosa e poesia são, em rigor, duas vias literárias que servem os meus diferentes propósitos de expressão.



2.       Mangualde Versus Almada:

Mangualde e Almada são um binómio que pautam a minha identidade a partir da viagem na geográfica sentimental (parabéns, Aquilino). Em períodos decisivos da evolução pessoal fui alternando entre o campo e a cidade. Nos contrários encontrei os complementos paradoxais para a constituição da personalidade que sou. Na verdade, os elementos naturais da poética colhi-os nas vivências campestres na Beira Alta. E os aspetos ideológicos e filosóficos derivam mais do ambiente intelectual e irreverente da Margem Sul e da Capital. A esse arco fui buscar parte dos nutrientes para a constituição do meu ser inquieto.



3.       Onde começam e acabam os versos?

Versos ou versus? As oposições surgem para percorrerem e explorarem os âmbitos do interior. O verso necessita desse confronto vital que encontra o reflexo no jogo dos contrários (versus), dando assim conta da ambiguidade metafórica, que preenche a fissura das ressonâncias íntimas e ontológicas. Se a minha poesia está condimentada pela filosofia analógica (desde a Sombra dos Momentos Felizes até ao Alpinista Descendente), já a minha prosa está repleta de alusões poéticas. No entanto, são dois convites diferentes: na poesia alicio ao gozo do delírio da palavra emocionada (Cf. Sereno Fluir das Horas e Desflorar da Flor de Sal); enquanto na prosa conto estórias acerca de personagens bizarras, por exemplo, em Lugar d’Avós procuro dar satisfação ao leitor através de uma viagem narrativa pelos recantos da memória.



4.       Que poeta(s) portugueses e porquê?

Dos poetas portugueses que me deslumbram, destaco: o apelo à metamorfose das palavras e das coisas em Herberto Hélder; o erotismo metafórico em Eugénio de Andrade; os transcursos nos significados linguístico em António Ramos Rosa; a especiaria da provocação em Alberto Pimenta; o requinte da poesia branca em Ana Hartherly; os meandros contrastantes dos problemas atuais em Joaquim Pessoa; quanto ao outro Pessoa, o Fernado, admiro o seu caleidoscópio, perdão, o seu planetário filosófico.



5.       Que livro em geral escolhe e porquê?

Difícil escolha. Face à dificuldade, opto por aquele livro que condensa bastantes das minhas preocupações: Assim Falava Zaratustra de Nietzsche, uma obra de desafio e incentivo à superação, onde em fascinante harmonia se conjugam a poesia, a prosa e a filosofia. Ou seja, é uma narrativa alegórica sobre as alturas – estamos perante o alpinismo ético, que estimula a criação humana, e também aos conceitos sedutores do sobre-humano, do eterno retorno e da vontade de poder.



6.       Poesia na escola? Sim ou não? Porquê?

É imprescindível levar a poesia à escola! A poesia deve ir à escola das sensações e da inteligência emocional. O mesmo é dizer, ser um dever educar pela sensibilidade. Numa época em que o livro é subalternizado, convém colocá-lo sob o olhar dos jovens em formação. Daí a nossa responsabilidade sobre o futuro da poesia fazer-se nos compromissos com as novas gerações.



7.       Como define a sua escrita poética?

Definir é circunscrever e limitar! Embora a minha poesia busque um modo de pensar e de sentir, que pretende comunicar acerca do incomunicável - que me desculpe o filósofo Wittgenstein, que neste caso aconselhava a calar-me. Ao invés, para mim, o poeta não deve ter receio do risco. Portanto, busco exprimir as imagens invisíveis que tatuam a pele sensível da alma. Mas haverá ainda quem pretenda partilhar este jogo e prazer estético, lendo-me? Ou estarei face a um irrevogável ato solitário?

quarta-feira, 1 de maio de 2019


 João Gonçalves fez-me uma extensa entrevista, que vale a pena ler no seu blog:
https://edepalavra.blogspot.com/ 
Entrevista também aqui transcrita na integra:

   «Em o Lugar d’Avós, romance de Carlos Amaral, somos convidados a escutar memórias da sua infância, quando há quarenta anos foi passar férias à quinta do Bispo, em Mangualde, bem como a estórias presentes nessas memórias: os ditos, os contos, as adivinhas expressas pelos avós em jeito de música, de sons próprios desse lugar. Essa música, juntamente com os bichos, com a natureza, significaram afecto, atenção a uma criança que estava bastante privada deles em Lisboa, sobretudo devido à austeridade do pai. Se aqui vivia em contenção, com o interior reprimido, na quinta dos avós pelo contrário o interior encontrou espaço, abertura para se exprimir.

A criança chega à quinta em estado de sobressalto, dormindo com pesadelos, mas o afecto dos avós, a empatia que transmitem fazem com que a tensão vá diminuindo, com que os sentimentos, as emoções, mudas na casa dos pais, tenham aí oportunidade para fazer ouvir a sua voz. É sobretudo através das estórias, contadas quase de forma contínua, que o espaço de afecto se vai estabelecendo; que os sentimentos, a par com vários ensinamentos morais, se vão misturando no ambiente da quinta, tornando-a ainda mais um espaço de natureza.

   O livro é um relembrar de episódios passados na quinta, de estórias que eram aí contadas, os quais no entanto não correspondem já totalmente à verdade, mas antes a qualquer coisa já alterada pela fantasia, pela liberdade de criar, de condimentar a gosto. Recordam-se estórias, não no sentido de lhes ser fiel, mas no sentido de reavivar certas emoções, de trazer para o presente uma certa tranquilidade, uma certa confiança. Quase no fim, na página 224, lê-se o seguinte:



“A locomotiva apitou, num adeus agudo. De volta a Santa Apolónia, partia esperançado, pois as experiências e as estórias amestraram-me no domínio da força interna, gerando o homem que pode recorrer a filtros pessoais para resolver qualquer problema. Fiquei munido do fio de prata da segurança, e, com o vigor próprio, enfrentei, daí em diante, todo o minotauro. O novo trilho, descoberto no campo, orientou-me nas vias descarriladas da vida urbana.”



   Através das experiências e das estórias aprendeu-se a dominar a força interna, a ser capaz de enfrentar a vida com mais confiança. Se a opressão, o medo faziam com que se andasse tolhido, já o afecto, a atenção dada pelos avós permitiu ter outra atitude perante a vida; foram, como se diz a certa altura, “fonte da energia vital a brotar dos recônditos interiores, onde simbolicamente edifico um abrigo pessoal.”

Perante as contrariedades, aquilo que tende a deitar-nos abaixo, recorre-se a essas reservas de afecto guardadas na memória, de modo a resistir-lhes. Aquilo que se viveu na quinta, a mudança de um estado amedrontado para um estado de confiança, em que se “desligava o interruptor da angústia, e ligava o da confiança. Mudava as emoções através das estórias e descobria um sentido positivo para a vida.”, serve também para o presente. Substitui-se um certo tipo de emoções, negativas, por outras, positivas, e isso parece fazer toda a diferença.

   As estórias nunca são muito longas, e a sua intensidade dramática é variada, umas com mais, outras com menos. Fica-se com a ideia que não é tanto o conteúdo das estórias que importa, mas sim o reviver de certas emoções, de uma certa atmosfera a elas associada. O conteúdo, o contexto em que eram contadas, tudo já mais ou menos alterado pela fantasia, parecem ser sobretudo ser um veículo para que essa atmosfera apareça, para que ela venha de algum modo influenciar o estado actual de quem conta.

Se recordar as estórias é recordar as emoções associadas, não importa que elas não correspondam exactamente à realidade. O importante, parece, é a sensação de liberdade que elas trazem a quem conta. Nas páginas 218 e 219 pode ler-se:



“A voz protectora oferecia segurança; o avô, pequenino, falava e o mundo despertava maravilhas. Estórias recontadas, em cascatas, diluíam maus resíduos, transformadas por fim, essas sugestões, em ambiente de agrado. Ultrapassei os receios no seio familiar, abri a porta aos sonhos povoando a mente de encantos, de tesouros, de amigos gerados na fantasia […] Entretanto, deliciado a magicar, abri portas aos mundos que me libertaram […] No ecrã panorâmico da consciência, criava heróis e monstros, envolvidos em lutas; recorrendo a palavras mágicas, originava imagens no reino onírico, de onde nunca saí. Ou seja, sobre os elementos naturais à solta pairava o meu espírito livre.”



   Recordar as estórias parece ser estar a reviver esse “ambiente de agrado”, indispensável para se deixar de andar tolhido, limitado, e se abrir portas ao espírito livre, que no mundo da fantasia encontra plena margem para se expressar.

Porém, liberdade para o próprio não tem que significar prejuízo para os outros. Se por um lado se criava o ambiente propício à libertação do espírito, por outro fazia-se perceber que essa liberdade não devia ir além dos limites da decência. Nas páginas seguintes, lê-se:



“O imaginário descontrolado levava o devaneio à estafa […] Exagerei, manifestando uma certa loucura nas palavras, gritos e correrias. Perante os olhos dos outros ia além do limite da decência. Tinha espectadores que ficaram perturbados. […] Escutei os receios deles, e senti o desespero, ouvi e aprendi a moderar os diálogos inventados. […] Na verdade, a imagem que temos de nós mesmos, inventada através da imaginação, é tanto relevante, quanto a que formamos a partir dos actos.”



   Ao mesmo tempo que davam afecto, os avós também punham limites. Portanto, quando se recordam estórias está-se provavelmente a reviver tudo isso: o afecto, as emoções positivas, mas também os limites, a decência indispensável. Quando se diz que os tempos na quinta preparam para o futuro, e que recordá-los ajuda a ultrapassar as contrariedades, está-se a reforçar esse espírito temperado, a trazer esse tipo de energia para o presente.

Foi essa a sensação com que fiquei; que se recontam estórias, não tanto por causa das estórias em si mesmas, as quais muito provavelmente já nem correspondem ao que originalmente foi contado, ou ao que originalmente foi experienciado na quinta, estando tudo isso já mais ou menos alterado pela fantasia, mas sim por causa do bem-estar, do tempero emocional que o evocar delas permite. São uma homenagem ao tempo passado na quinta; aos avós, pela disponibilidade, pela “dose certa de afecto” que “permitiu ultrapassar os receios, formando um Ulisses corajoso, de modo a enfrentar os mares da vida, entre adversidades, alimentando a confiança para um dia chegar a um porto renovado.”

   No geral gostei de todas as estórias, ainda que, naturalmente, mais de umas do que de outras. Por exemplo, gostei muito deste modo de dizer as coisas (63-73):



“No musgo da pedra, a vedar a poça, sentava-se uma jovem de catorze anos. Esguia sob túnica branca a cobrir-lhe as formas, que brotavam da natureza para me estremecerem os sentidos, ela brincava com ervas nos braços e nos pés, subindo-lhe aos joelhos. Um regalo, enquanto não deu conta da minha presença, eu estava escondido por uma coluna granítica, num patamar mais elevado.

   Na moldura de ervas e arbustos, tranquila, a ditosa ninfa mirava-se no reflexo da água. Imagem de rosto formoso, cabelo louro, olhos de um azul celeste, cândido, envolvente. Quase não caí embevecido. Olhou-me a partir do espelho de água. Uma descarga eléctrica percorreu-me a medula, partindo dos seus olhos, semelhantes a janelas do céu a espreitarem-me.

   Seria eu uma imagem encantada surgida na imagem da água?

   Levantou o semblante, observou a periferia da poça até me perceber pasmado. Recuou uns passos. À distância segura voltou-se para me fitar. Em paixão, o céu daqueles olhos elevaram-me, estremeci zonzo e no brilho entrevi o ribombar do amor. Ela sorriu, ciente do seu poder sobre mim, deu uma risadinha, abalando em salto de corsa.

[…]

   Perguntei se a condição da avó seria de condessa – que interessava de quem era filha, desejava apenas voltar a revê-la. Nervoso, percorri as fronteiras da quinta, vislumbrei-a ao longe, nos serros a guardar o rebanho de cabras – daí a piada da Constança.

   Em rigor, esse amor provocou-me um apagão na memória. Fiquei desassossegado, sem dormir, nem sabia já quem era. A sua imagem campestre perseguia-me nos sonhos à maneira de uma bacante – seria eu o cordeiro imolado nos seus braços?

   Acordei absorto no ambiente sentimental e passei pelo lugar do encontro. Escondi-me atrás do caniçal. Palmas para a actriz! De maneira que pressentira, ela apareceu, a mirar a vereda que levava à casa da quinta. Nesse dia escaldante, ela aproveitou o apelo do Verão e molhou os pés, fruindo um choque térmico agradável. Esboçou tirar o vestido, mas uma apreensão travou-lhe o gesto. Deslizou e afundou-se na água da poça, mergulhou no líquido fresco a chapinhar, espantando a passarada, que levantou voo, em alvoroço.

   Junto ao canavial, onde deixara o cesto, fui depositar uma rosa, que colhera no roseiral da avó. Escondi-me sem ser detectado. Entretanto, satisfeita com o banho, em câmara lenta, a jovem, a escorrer saiu da água. O vestido colou-se ao corpo na extensão da pele. Vi-lhe o contorno redondo das pernas, os pêlos púbicos num ninho desfeito, a cintura delgada, os pequenos seios firmes, tais tangerinas plenas de frescura, o pescoço de garça e o cabelo corrido num véu de ouro húmido.

   – É mesmo linda! – Dizia eu, entre dentes.

   Nunca imaginara que uma rapariga despertasse tanta emoção.

Saiu do açude, com as pernas mais belas que colunas gregas. Pulou para o meio do relvado, torceu o cabelo e o vestido, sem o retirar do corpo. Em passo firme dirigiu-se para a cesta. Espantada contemplou a rosa, junto à merenda; logo fitou todas as direcções, desconfiada. Serenou. Pegou na rosa e aspirou-a, como se absorvesse o odor do mundo. Retirou-se, majestosa, com as mãos e a rosa a ocultarem zona púbica.

   Fiquei cheio de raiva por não lhe ter saído ao caminho, do jeito que tinha previsto, para lhe confessar o amor. Estava seguro, havia de voltar em breve e iniciaríamos um contacto pessoal.

 […]

   Entretanto, nós os pequenos amantes em xeque escondidos, encontrámo-nos no limiar próximo da mata, onde o avô edificara a cabana de colmo, que nos protegia entre os fardos de feno. Esperávamos por melhores horas e por um final menos conflituoso. Adélia fungava, as lágrimas corriam-lhe pelo rosto, dando-lhe a candura que atiçava o desejo.

   Queria convencer-me de que a aventura apenas começara:

   – Foge comigo, vamos percorrer o mundo.

   – Não posso, há-de haver outra solução.

   – Falta-me a coragem para encarar a minha mãe.

   – Que faríamos para nos mantermos, pois nem roupa temos?

   Afinal, reparávamos na nossa nudez e, atingidos pelo pudor, tapávamos com as mãos as partes íntimas.

   – Não és homem, não és nada, se recusares vir comigo.

   – Homem ainda não sou, mas hei-de o ser.

   – Desistes então?

   – Virei buscar-te depois, Adélia.

   – Ou é do jeito que eu quero ou nunca mais me tornarás a ver.

   – Jamais deixaria os avós preocupados.

   – Gostas mais deles do que de mim?

   – Trata-se de gostos diferentes.

   – Menino do avô, não quero nada contigo, és um fraquito!

   Com a decisão tomada, ela ergueu-se, desaparecendo, de corpo nu a ondular na paisagem. Gritei de modo a vê-la nos olhos uma última vez, mas era definitiva a resolução. Ignoro se devido à sua vontade ou à da mãe, ou a outra causa estranha, mas nunca mais nos dias da minha vida voltei a contemplar essa namorada.”;



   Ao contrário do que por vezes senti noutros casos, quando atento nas duas primeiras partes desta estória parece que aquilo está ali, que o que está a ser dito me toca de uma certa maneira; não me parece ser algo longínquo, mas uma experiência que se está a desenrolar ali, e na qual eu posso participar de algum modo: a atracção do jovem pela moça junto à água; o olhar sorrateiro, cheio de desejo mas também receoso; o querer contido, que não é só da parte dele mas também é da parte dela, que se banha e se expõe sabendo estar a ser observada, sabendo que quem a observa sabe que ela está a ser observada e finge não estar. Os detalhes, os pormenores físicos, comportamentais, paisagísticos; a forma como tudo isso é conjugado nas palavras faz com que a estória tenha muita vida. A sensualidade, associada a um certo recato, a uma certa inocência; o desejo das formas corporais, entretido na brincadeira com as ervas nos braços e nos pés; os olhares indirectos, descobertos no reflexo da água, que depois se tornam directos, intensificando gradualmente a proximidade dos amantes. Há um certo fingimento, a exploração da magia de um certo momento, de um sentimento, de uma sensualidade contida: “Olhou-me a partir do espelho da água […] Levantou o semblante, observou a periferia até me perceber pasmado. Recuou uns passos […] Esboçou tirar o vestido, mas uma apreensão travou-lhe o gesto […] Entretanto, satisfeita com o banho, em câmara lenta, a jovem, a escorrer saiu da água […] Espantada, contemplou a rosa, junto à merenda; logo fitou em todas as direcções, desconfiada. Serenou."

Já na última parte dessa estória, a contenção parece vir do outro lado, sugerindo uma certa maturidade, um certo crescimento: “ – Foge comigo, vamos percorrer o mundo. – Não posso, há de haver outra solução.” […] “ – Ou é do jeito que eu quero ou nunca mais me tornarás a ver. – Jamais deixaria os avós preocupados. – Gostas mais deles do que de mim? – Trata-se de gostos diferentes.”

   Ao mesmo tempo que há uma atracção, uma paixão quase irresistível pela jovem, há também uma noção mais lata, mais afastada das coisas. “Trata-se de gostos diferentes.” Não se misturam as coisas; a paixão pela moça é forte, mas não o faz perder a sensatez, não o faz passar por cima das coisas de qualquer maneira.

Penso que desta forma se está ainda a falar daquele espirito temperado referido acima, mas só que agora através de uma perspectiva mais próxima, evocando sentimentos, reacções, comportamentos que de alguma forma foram vividos na quinta. Na minha experiência enquanto leitor não foi a mesma coisa ler que:

“No ecrã panorâmico da consciência, criava heróis e monstros, envolvidos em lutas; recorrendo a palavras mágicas, originava imagens no reino onírico, de onde nunca saí. Ou seja, sobre os elementos naturais à solta pairava o meu espírito livre.”,

e depois que:

“Exagerei, manifestando uma certa loucura nas palavras, gritos e correrias. Perante os olhos dos outros ia além do limite da decência. Tinha espectadores que ficaram perturbados. […] Escutei os receios deles, e senti o desespero, ouvi e aprendi a moderar os diálogos inventados.”,

ou por outro lado ter lido essa pequena estória. Enquanto no primeiro caso senti uma descrição das coisas, um apontar para elas, no segundo senti essas coisas de uma forma mais próxima, e também ao mesmo tempo um convite a participar nelas. Um pouco como a nossa relação com certas coisas, em que só as percebemos depois de as experienciarmos.

   Penso que há uma diferença entre essas duas maneiras de falar sobre as memórias, e que é na última que o “reviver” tem mais sentido. Como leitor não podia é claro revivê-las, mas por outro lado também não queria estar como um estranho. Queria ir um pouco a esse mundo, partilhar um pouco dessas experiências em Mangualde, e foi em momentos como os dessa estória que me senti mais próximo disso.

Quando mesmo no final do livro se diz: “Mesmo quem não viveu, que tenha experimentado connosco e, em paralelo, haja sentido as próprias memórias…”, sinto que isso é mais assim quando aquilo que leio é algo diferente desses momentos. Como não encontro nisso o que encontro nessas estórias, ao tentar transportar-me um pouco para essas férias em Mangualde acabo afinal por estar a recorrer apenas a coisas minhas, a coisas da minha imaginação. Para tentar compreender um pouco essas férias eu preciso de sentir o que isso foi, de perceber o que foi essa realidade, e é por isso que gosto mais das estórias que de alguma forma me transmitem isso, que me convidam a entrar, a participar nelas. Creio que só desta forma consigo chegar mais perto do outro, compreendê-lo um pouco melhor, e assim contrariar a tendência de estar fora, apenas a emitir opiniões da minha cabeça.

Um muito obrigado ao Carlos por esses momentos de leitura. Foi um prazer lê-los!





Como é que nos podes apresentar o teu romance. É um pouco como um livro de memórias, um episódio autobiográfico, ou para ti isso tem pouca importância?

Não é relevante, classificá-lo enquanto episódio autobiográfico e de memória, pois tal evocação contém um claro propósito estético. Ou seja, o interesse reside no processo como lhes acedo (…à autobiográfico e às memórias). Necessitei de encontrar um ritmo interno na narrativa, quase próximo do ritmo de embalar, remetendo para emoções revisitadas. Por outro lado, esta obra pretende acolher o tempo atual da abordagem de qualquer leitor.



Logo nas primeiras páginas é enunciado de forma clara o objectivo de através do conto de uma estória voltar atrás no tempo, às memórias de infância, pondo-se como condição para isso a sedução da memória. Qual é para ti a relação entre contar uma história e seduzir a memória?

Contar uma estória, narrando-a por escrito, passa pela evocação daquilo que a memória consegue apresentar… Mas a memória necessita de ser aliciada de forma a surpreender-nos criativamente, através da imaginação, trazendo algo inusitado. Portanto, as memórias contêm muito mais do que aquilo nos conseguimos recordar… essa mais-valia excedentária é o trabalho da dita sedução.



Podemos dizer que o Lugar d’Avós tem um carácter confessional, ainda que esbatido pelas estórias?

Confesso que quis retornar a uma época difícil para mim, enquanto personagem infantil. Confesso que pretendi restaurar um tempo perdido. Confesso que desejei prestar uma homenagem a algo que representa um espaço e um tempo idílicos. Confesso que esgaravatei: no telhado do forno do pão, na lembrança, nas emoções vivas e nas dores de crescimento.



Diz-se na obra que a “dose certa de afecto” dada pelos avós permitiu alcançar o equilíbrio emocional. Quando se cresce com afecto a mais ou afecto a menos está-se mais sujeito ao desequilíbrio?

O afeto quer-se com peso, conta e medida – como uma aritmética das emoções – o que de algum modo é paradoxal. Mas, no que envolve a componente educacional, esse equilíbrio é necessário, pois o excesso e a carência são defeitos, como já detetara Aristóteles (Ética a Nicómaco). Ou seja, a carência deixa uma brecha de descontentamento na formação do indivíduo. E o excesso também estraga, pois, é necessário um âmbito de desejo, para tornar o sujeito ativo na resolução dos seus problemas.



Também se diz que as estórias contadas pelos avós proporcionam a libertação da alegria, e pouco depois que a embriaguez, apesar de também nos proporcionar algum gozo, é no entanto algo que nos faz perder o controlo. Quer isto dizer que nas estórias, ao contrário da embriaguez, a par da alegria e da libertação há também algum controlo?

A embriaguez narrada em Lugar d’Avós foi bem real. O Avô queria que eu fortalecesse com gemadas de ovo misturadas com vinho e açúcar – as sopas de cavalo cansado foram um coquetel fortíssimo para a criança! Abriu o espaço do caos e do descontrole. Todavia, nas estórias contadas há um auto controle, que está a ser desenvolvido no personagem e transferido para o ouvinte/leitor, pois no espaço de narrativa o significado estabelece-se em simultâneo. É como se nesse fio condutor se criasse um nexo interior que lhe traz redobrado significado. A estória pode ser esse botão que faz despertar um alvoroço, ou até o gérmen que conduz ao controle pessoal. Na estória inventa-se um novo significado, que traz a alegria, inerente ao domínio de si.



A certa altura refere-se que a escola tanto nos fornece ferramentas para quebrarmos as convenções, como nos incute e formata ela própria no seio doutras convenções. Achas que as convenções são de todo desnecessárias?

As convenções são necessárias quando estipulam algo aceitável. Facilitam a vida se forem plásticas, abrindo portas à transformação, segundo os propósitos internos para o desenvolvimento de cada qual. Por exemplo, na vida escolar as convenções lucidas evitam muitos conflitos desnecessários e dão orientação e segurança aos jovens e às crianças.



A infância do avô também foi marcada pela falta de carinho, por influências que equiparavam a grandeza do homem à grandeza material que se possuía; e no entanto, apesar das suas imperfeições, ele não deixa de cultivar a dignidade. Não se pode admitir alguma ligação entre a convenção e a dignidade?

Algumas convenções da tradição social, que estipulam o exercício dos poderes e a distribuição dos bens, que não estão franqueados a qualquer um, retiram, logo à partida, a dignidade a quem quer progredir ou ascender na escada social. Logo, há uma dignidade autêntica, de quem conquista um lugar no mundo, combatendo uma falsa dignidade imposta, por exemplo, por determinada classe social para excluir os outros através de um artifício e de um poder.



Pergunta-se a certa altura se o preconceito do avô acerca das mulheres não é fruto de um secreto mal-estar de amor, se isso não traz chumbo na asa; e diz-se que apesar dos devaneios ele continua ainda a abrigar no peito a imagem da pureza íntima. Estamos a falar de um personagem romântico?

O avô Bispo é mais um utilitarista do que um romântico. Não obstante, ele entende que na formação de um adolescente o romantismo tem um papel relevante no seu crescimento.



E há alguma relação entre isso e o que se diz depois, a propósito do estigma social de que são vítimas as mulheres?

O avô tem um senso de justiça no que envolve a desigualdade de géneros, compreendendo que numa sociedade machista rapidamente se atinge um domínio do homem e logo desculpam-se alguns violadores e poderosos que roubam a dignidade à mulher e aos seres mais frágeis.



Às tantas diz-se que o avô teve de ir para a quinta, de modo a não ser dominado pelos impulsos que o levavam a procurar amantes, e que a avó também resiste ao mesmo tipo de pulsão através do trabalho incessante, o qual ela diz ser fraqueza feita força. Achas que mantermo-nos ocupados com coisas nos ajuda a manter certos impulsos sob controlo?

Os impulsos são a fonte de bastantes ações humanas. Logo, apenas os impulsos que nos distraem do que queremos ser, devem ser mantidos sob controlo. Portanto, a quinta representou uma espécie de exílio, que inibiu alguns impulsos semelhantes a ervas daninhas…



A dada altura refere-se o enorme gozo sentido com estórias em que se relatam sofrimentos alheios, e que isso é uma grande contradição humana. Como é que um gozo sentido por um ser humano pode ser uma contradição humana?

Na verdade, um gozo que tenha por alvo o sofrimento alheio não é um gozo ético. À semelhança, os romanos que se divertiam com o sofrimento dos outros no circo, aos olhos do meu Bispo seriam grosseiros e pouco digno de quem os pratica. Embora a piedade também não fosse por ele bem vista, por destruir a formação da força do carácter, pois necessitamos da dose certa de sofrimento homeopático.



A pouco mais de meio do livro, há um episódio em que se equipara o gosto pelas qualidades de uma pessoa ao gosto do sal na comida: não se quer nem insossa nem salgada, mas sim temperada. Quer dizer que na vida tanto a carência como o excesso de certas características pode ser prejudicial para a saúde?

Mais uma vez o equilíbrio. O gosto está aí. O excesso e a carência de sal tornam o conduto da vida pouco apetecíveis.





Há um momento em que se alude à conversa, à brincadeira, aos jogos, aos contos, e se refere a ligação destas coisas à terra dos afectos. São estas coisas que permitem que venham mais facilmente à superfície certos sentimentos?

Os jogos, brincadeiras e as estórias implicam atividades lúdicas que libertam e aligeiram, quebrando a rigidez presente na educação paterna. Assim liberto, chegam à superfície outros afetos que não o medo…



Quando se diz: “No ambiente rural, esqueci os citadinos sofrimentos da vida familiar – tal desordem era demasiada carga para um menino.”, isso significa que esses sofrimentos estão relacionados com uma certa desordem, e que a cidade é mais propícia a essa desordem do que o ambiente rural?

No âmbito rural tudo é feito à escala do ser humano; nas grandes urbes, ao invés, o ser humano pode ter outras possibilidades, mas perde a integração afetiva e intuitiva no ambiente global – há, por vezes, na cidade um afastamento de uma natureza humana.



Tem isso a ver com a pressa, com o movimento compulsivo, com “uma extravagância semelhante à do coelho da Alice em corrida contra-relógio no país das maravilhas.”?

Submetendo-se ao toque do contrarrelógio de facto torna tudo antinatural, artificial fazendo-nos andar atrás das horas e da rolha, ou seja, andamos a ver passar os comboios, pois, sob esse ritmo nada parece ter genuíno significado. Na urbe há um ritmo que raramente é o do coração e dos afetos.



Pode-se dizer então que em Lugar d’ Avós não são só importantes as relações familiares, mas que também está presente uma geografia dos afectos?

A geografia dos afetos recai sobre a beira alta (a terra do protagonista). Mas é, sobretudo, um espaço interior que necessita de ser cartografado para melhor nele poder navegar, pelo oceano de carvalhos e pinheiros que ladeavam a quinta beirã. Contudo, pelo facto de já pertencerem ao reino do jamais (devido à ação dos mineiros do uranio que destruíram aquela paisagem idílica), tal levou-me a revivê-la através do campo da imaginação, permitindo que na atualidade a continue a percorrer com um deslumbramento utópico.







O livro tem 22 capítulos. Levou-te muito tempo a lembrar as várias estórias que neles vais contando; houve umas que foram puxando outras; ou já tinhas tudo bem presente na memória?



Perguntas, onde gerei o novelo que me levou a recontar as estórias? Tal encontra-se na lista de tópicos, que registei quando frequentava a universidade (1981-85), com o fito de preservar para memória futura. Mais recentemente, depois de me debruçar em cada um desses pontos, brevíssimos novelos a partir dos quais desenrolei as restantes meadas da narrativa, com o auxílio precioso da imaginação. Ao buscar a unidade e a coerência tive que inventar outras estórias… Em cada um dos 22 capítulos há dupla unidade, uma que remete para a globalidade da obra, outra interna, como se em cada capítulo se gerasse um arquipélago de novas estórias insólitas que se atam às outras.







Um pouco mais à frente, ao falar de educação, alude-se a um meio-termo entre a excessiva severidade e a excessiva permissividade; à arte de introduzir alguém na mestria e domínio de si e do mundo. Tem isto alguma coisa a ver com a desordem referida há pouco?



A arte do domínio de si mesmo foi uma das sabedorias que adquiri no convívio com os avós. Para isso, não podemos ser domados pelo medo, insegurança e tristeza prolongada, mas também não podemos ser amolecidos por afetos moles que nos retirem a têmpera.







É dito que o pai é severo por causa da vida dura que teve, e que no entanto ele entende estar a fazer a coisa certa, preparando os filhos para as dificuldades da vida. Parece existir aqui um reflexo cultural, em que aquilo em que nos tornamos é determinado pelo nosso passado.

Também é dito que a solução para isto está na imaginação, pela qual podemos derrotar a influência castradora através da fantasia, dos sonhos acordados. Não há no entanto o perigo de com isto ficarmos alheados da realidade, absorvidos num mundo de “maravilhas”?



Havia uma necessidade premente do meu pai em fazer-nos “crescer” e inserir no “mundo real”, ao qual se subalternizava qualquer satisfação. Essa severidade matava a vivência afetiva, natural num ser em crescimento. O delírio do imaginário infanto-juvenil traduzia a possibilidade de encontrar alguma felicidade através do recurso à imaginação, a qual não é forreta a satisfazer esse mundo infantil e da puberdade.



Em todos os capítulos há uma gravura do pintor Paulo Medeiros, que funciona de algum modo como uma tradução da tua imaginação, assim como a tua imaginação funciona de algum modo como uma tradução dessa tua satisfação afectiva. No entanto, por mais fiel que possa ser, parece que pelo menos a respeito de coisas profundas há sempre alguma coisa que escapa ao sentido de qualquer tradução…



As imagens do pintor Paulo Medeiros ilustram cada capítulo de Lugar d’Avós de um modo singelo, mas ao mesmo tempo criativo. Ele selecionou e acrescentou a sua visão da obra. Encontrou um modo de dar uma dimensão visual aos diferentes capítulos. Se foi além, ou ficou aquém, que interessa? O diálogo entre artes distintas compensa devido à fecundidade. As gravuras revelam uma linguagem artística diferente, que a par da peça de teatro, baseada no mesmo argumento, representam modos de abrir a obra a públicos distintos. Interessa que esses diálogos não acabem, desse modo, o romance vai estimulando a sensibilidade artística, que se manifestará como abertura do ser humano às suas intermináveis dimensões.



Diz-se mesmo no final que as evocações nesta obra fizeram reviver memórias, e que se espera que o leitor ao lê-la também seja capaz de reviver as suas. É necessário alguma atitude específica do leitor para que isso aconteça, e tem a própria obra alguma influência nisso?

A obra, Lugar d’Avós, franqueia o retorno ao passado, pretende REVIVER. Acaba por ser contagiante, pois, ao mostrar a viabilidade terapêutica, é como se criasse uma ponte de acesso à felicidade de cada qual no seu retorno ao passado vivido por si mesmo. Contudo, tal género de chaves técnicas não são, nem devem ser dadas de modo artificial, pois isso poderia introduzir equívocos graves. Na verdade, o que foi terapêutico para mim pode ser venenoso e tóxico para outro ser (mais ou menos sob as mesmas circunstâncias). Se, por exemplo, o acesso ao passado representou a reabertura de feridas que já estavam saradas. Em certo caso, a obra de arte (romance) é insuficiente para estabelecer esse percurso. Nessa circunstância anómala, torna-se necessário um apoio clinico especializado no âmbito da saúde mental. Ora, não se tratando desses casos, ficam abertos outros mundos, onde uma espécie de ternura, parecida com a que é veiculada nas estórias populares, ou nas literárias que podem facultar o acesso ao plano histórico do interior do próprio leitor...



Sei que também escreves poesia, e que estás ligado ao teatro, como dramaturgo, encenador, e até actor. Utilizas todas essas formas de arte como veículo para o percurso que referiste?

Na redação final de Lugar d’Avós manifestam-se as inspirações das outras artes que exerço, pois quer nos diálogos, quer na criação das personagens está presente a vertente cénica. Quanto à poesia, inolvidavelmente, ela envia-nos para o lirismo que atravessa a obra. Não quis ser prosaico! Pretendi aproveitar esse lugar das emoções imaculado, que deriva da poesia das sensações, e que transbordaram em afetos reparadores. E, assim, pretendi encontrar um veículo de comunicação com o âmago de cada leitor em particular.



Queres terminar com uma breve nota sobre o estilo da tua escrita nesta obra?

O estilo de Lugar d’Avos é cuidado como o do ritmo da mão que embala o berço. Nessa cadência vou em demanda da narrativa, num fluxo de metáforas e outras figuras de estilo. Quis cuidar da palavra criativa, que me reafecta e me transporta ao íntimo do imaginário pessoal e colectivo.»

quarta-feira, 6 de março de 2019

Crítica literária de Américo Morado a Lugar d’ Avós



A condição humana, a morte inevitável e a mágoa que deixa em quem ama ou admira.

Neste livro está patente a frustração ou a impotência humana de mudar o que acontece, pedindo à morte que traga de novo a vida ao avô seu ídolo.

Amar é deixar partir. Memória, ao contrário, é também, trazer o passado, colocá-lo ao nosso lado e com ele falar e voltar de novo a fazer o juramento de honrar o avô criando um livro, como se o avô abraçasse.

Abençoado neto no sentido de dádiva e prazer de apresentar o avô a cada um de nós e nós vamos amando aquele avô a marcar a nossa existência como exemplo de luta, tenacidade, perseverança, atrevimento em mostrar que “os tem no seu lugar” firme e a clareza nos objectivos traçados para ir vencendo a vida. E, venceu até ao fim mostrando como se caminha na vida.

Falei do luto.

Descrevo, agora, o que saliento do livro “Lugar d’ Avós” e do autor.

O livro é um retrato dos usos e costumes de quem conhece de raiz as gentes aldeãs, nos falares, na intercomunicação rotineira, vivida e experimentada e o entrelaçamento de estórias onde a ficção se torna realidade.

O autor é, neste livro, de um realismo fotográfico cromático, contagiante como se cada um de nós visse, tocasse, sentisse as personagens as paisagens, os gestos e o vestuário, os utensílios domésticos e campestres.
O livro é um poema que se lê com prazer e voltar a reler.