domingo, 24 de outubro de 2010

PENSAR EM AZUL

PENSAR EM AZUL



As libélulas voltejam
embriagando o céu
que bebeu a cor dos olhos
aos lírios floridos
na capela Sistina
à velocidade etérea da luz
matizando a água sacra
que adoça a flor de linho.

Carlos Amaral, Alpinista em Ascensão (no prelo)

Ao ser solicitado para reflectir sobre a temática do AZUL, primeiro corei de emoção, e logo fiquei em branco perante a folha nua. Apenas ao recorrer ao fetiche da caneta azul de tinta permanente alinhavei as linhas com que teci este breve ensaio. Envolvi-me no ambiente azul do planeta Terra visto do espaço pelos olhos dos cosmonautas e dos deuses mitológicos. E se tudo tem um começo, e a primeira abordagem foi fabulosa, então também não quero escapar a esse estilo de sequência inicial.
Nos primeiros versículos dos Génesis, narrando o originário acto divino, Deus feito verbo, disse: “Faça-se luz”. À semelhança da linguagem de um poeta “o azul é a escuridão tornada visível” (Claudel). O poder demiúrgico rompeu o negrume das trevas primordiais, e o olho divino avistou o azul do céu claro e o azul-escuro do oceano. Na luz incolor vinha essa possibilidade de reagir à vibração da cor da água e do ar, por uma impressão visual que se passou a designar simplesmente azul. E Deus gostou do que viu, como pintor com a paleta na mão, que se surpreende com as suas cores...
Ainda na linha mitológica os antigos egípcios, elegeram o azul como cor da verdade, e com o lápis-lazúli decoraram as jóias. Enquanto nas criptas do Vale dos Reis estão pintados os céus diurnos de azuis-claros e os céus nocturnos pejados de estrelas em anil. Apresentando num ciclo eterno tudo a sair da boca de Nut, a deusa do céu, que depois engole o Sol no inicio da noite, para de madrugada voltar a pari-lo no claro azul diurno.
Não nos quedamos pelo vale do rio Nilo que a montante já tivera o nome de azul. Face à controvérsia, o simbolismo desta cor absorve infinitos traços culturais. E, onde uns vêem anjos azuis, outros fitam demónios igualmente azuis. Embora o azul exista antes dessa predicação, mas quantas vezes as casas de Deus foram pintadas dessa cor, nos frescos de Miguel Ângelo na Capela Sistina, e a esplendorosa mesquita homónima de Istambul.
Entretanto a primeira visão crítica da filosofia emerge nos recortes paisagísticos do mar Egeu. Pese embora o problema de os pensadores reflectirem acerca do azul se revelar dificultado, por se centrar apenas num único conceito; um termo apenas representa uma apreensão da qual se obtém uma ideia, mas que isolado, por si só não pensa. É como tentar bater palmas com uma só mão. Ainda que o azul por si só não pense, no entanto, pode ser pensado. Diria mais, a tal cor propícia o acto de pensar, primeiro como um atributo que predica muitos sujeitos e objectos (“o céu azul; “olhos azuis”; “pedra…”); em segundo é a cor apropriada para criar um ambiente favorável ao acto de pensar, como constataram Fátima Alves e José Arêde:
“O azul é uma das três cores primárias, cuja vibração (frequência de 680-620 THz). O azul produz nos seres humanos a sensação de paz, ordem e harmonia, criando as condições propícias ao pensar, pelo que pensar Azul é pensar com calma e com alma. Pensar (na vida, no amor, no ser…) e agir para que a sede de harmonia que anima o espírito semeia futuros mais azuis” (1).
Se inicialmente o azul é a cor indutora da serenidade, da paz e da ordem; de seguida, pinta portas e janelas invisíveis, por onde o pensamento avista e fecunda as utopias que pretendem germinar o futuro. Daí, filosofar em azul remeter para uma frequência repousante, apesar de o pensamento recair sobre uma cor primária, isto é, elementar, no entanto, parece ser a cor do nosso quadro mental. Pois se o ser humano não tem uma caixa preta – como os aviões – ao invés, detemos uma caixa azul, aquela onde se preservam os dados da alma até hipoteticamente serem transferidos para outro ser. Deste modo o azul ganha asas no imaginário infinito.
É a cor do inacessível pássaro da felicidade, tão próximo e ao mesmo tempo tão distante, enquanto tal é semelhante à busca da verdade filosófica, que os egípcios representaram com a cor cerúleo, o que remete para uma transcendência, inevitável ao acto livre de pensar. Dando o mote a Mário de Sá Carneiro: “Um pouco mais de azul – eu era além…”, apelando à transcendência a partir da coloração que simboliza toda a etérea metafísica. Isto é, o movimento que marca o deslocamento para lá da imanência, como diz Bachelard “não existe luz imóvel o céu azul tem o movimento de um despertar” (2), correspondendo a um acordar do ser na existência, o que de certa forma envolve a renovação.
Noutra perspectiva, constatamos que a capacidade de ver cores é uma prerrogativa dos primatas. Durante a escalada evolutiva estas espécies coloriram o mundo para melhor apreender traços que as auxiliaram na selecção da vida. Assim apuramos que os primatas são dos poucos animais que recorrem à combinatória do azul, e das outras duas cores primárias, o amarelo e o vermelho, conseguindo por isso dominar a paleta do arco-íris.
É sabido, desde Newton, que cada cor reage a um movimento de luz, isto é, uma frequência dentro da decomposição do prisma. Enquanto os filósofos empiristas e da fenomenologia quiseram sentir as cores na consciência – sem filtro –. Suspendendo todo o juízo, constatamos o que emerge na consciência com a experiência do azul. Sentimos uma vibração visual! Assim, Merleau-Ponty repara que há uma reacção impulsora do sujeito face à cor azul, correspondendo a um cumprimento de onda com uma dada intensidade, que leva a uma estimativa por parte do cerebelo (3). Detalhadamente, a cor envolve uma frequência de vibração que a retina recebe e converte numa onda, que é retransmitida pelo nervo óptico ao cerebelo, o qual em último caso a decifra e a representa na sua parte parietal.
No âmbito científico, destaco a obra cosmológica Um Pouco Mais de Azul de Herbert Reeves a dar conta do fabuloso cronómetro que é o efeito de Doppler, que mede a deslocação no tempo e no espaço, a partir do afastamento visível no espectro colorido, no caso de as cores galácticas serem orientadas para o vermelho. Ao invés, há uma aproximação do nosso ponto se as estrelas e as galáxias se pintarem de azul - violeta, que analogicamente é um sinal de intimidade.
Avançando na filosofia da linguagem, Wittgenstein defendeu a padronização da cor reside no conceito que a define e circunscreve e não tanto naquilo que seria o azul em si mesmo. A cor azul depende da representação que dela formamos, tal como no interior das regras do jogo de palavras, onde “azul” ganha um significado atribuído por uma rede de conceitos, de convenções semânticas e de acordos sociais, como deixava adivinhar a investigação das cores de Goethe:
“Quem concorda com Goethe, acredita que ele reconheceu correctamente a natureza da cor. E aqui a natureza não é o que resulta da experimentação mas reside no conceito de cor” (4).
Se para estes filósofos, o azul depende de uma rede de noções em jogo entre si, já num plano epistemológico, devemos perguntar, onde está o azul no olho que vê, ou no pigmento do objecto que é visto. Ou nas articulações do cérebro com as descodificações do pigmento onde incide a luz que é captada de uma determinada forma pelo olho. Ou o azul como qualquer cor existe enquanto qualidade segunda à qual a nossa percepção é sensível.
Contudo, o azul é uma cor temperamental, serena para aliviar as mágoas, como por exemplo o céu celeste. Mas também, noutras conotações culturais, significa a raiva da tensão de quem já não resiste mais estando quase a explodir. Ao explorar esta noção, damos a palavra à criança, recorremos para tal ao registo de um breve diálogo do filho com a sua mãe, como ocorre numa descrição no Facebook:
“-- Filho, pára com esses disparates. Já estou a ficar azul”
“-- Azul-escuro, mamã? Eu só gosto de azul escuro, azul claro não” )).
Frederico, que preciosa ajuda me deste com a inocência dos três anos, o que se entende por azul-bebé afinal não é apreciado por uma criança que se revela um mestre na intuição do azul-escuro. Na verdade existe uma série interminável de azuis que ganham destaque nesta classificação. Se uns são motivos de agrado, outros tons geram o descontentamento estético.
Qual é o tom de azul preferido? O celeste, o ultramar, o ardósia; o da-Prússia; o eléctrico; o marinho; o petróleo… – Os pintores recorrem a dezenas de tons de azuis, pois descobriram que as sete cores são um mito, a substituir pelas mil cores que as metáforas dos poetas desde sempre buscaram.
Prefiro o azul dos olhos da amada, sentindo o indizível, parecerem janelas para uma alma celestial a prometer-me o amor eterno. A mais bela das cores do arco-íris, sintetizadas pelo prisma de Newton, mas presentes desde as origens nas cores das bolinhas de sabão que fazem sonhar. Em quantidade colossal, o azul é a cor refrescante da grande mole de água nos lagos, nos mares, nos oceanos.
O azul é parte impressionante de todo o cosmos. Sendo ainda ampliado no microcosmos da cultura contemporânea como na vibrátil Rapsódia in Blue de Gerchuin? No mundo paralelo da arte pictórica de Picasso, o seu período azul pinta a triste nostalgia que afecta a fase crucial na viragem da sua arte.
Esta cor primária é ainda privilegiada nas paletas da infância, dos ‘naiff’ e dos impressionistas. Evocamos nesse caso “a noite” de Van Gogh, uma tempestade nocturna de estrelas no céu de uma aldeia campestre, onde galáxias azuis giram em remoinho lá em cima, enquanto os humanos dormem e sonham cá em baixo. Quadro calmante que emoldura numerosos quartos da conturbada juventude. Pois essa tempestade caótica do cosmos na sua noite azul provoca um sublime paroxismo, que de modo catártico apagava a luz da inquietação.
Também ao querer descansar não recorro à cor rosa, nem ao amarelo, nem ao branco nem ao verde. Dêem-me, por favor, o meu azul. A cor do olhar celestial da suposta namorada. E também a cor do céu da andorinha que não faz a primavera de Aristóteles, mas faz a minha. Uma andorinha com algumas penas em azul torna-me feliz. Se a felicidade no domínio comum pode ser definida pelo conjunto das cores do arco-íris, para mim por redução se me forçarem a optar apenas por uma cor, escolheria o azul.
Dando os últimos retoques, as cores como o azul continuem a pintar o pensamento. E este sempre luminoso mesmo debaixo do negro espectral da noite, deixe pensar em azul o caminho sempre aberto da utopia e da felicidade...


“(…) olha-me do fundo do oceano
de transparência azul.
Apetece em ti mergulhar,
dissolvendo a secura das sensações
e o jejum dos afectos (…)” (5)


Carlos Alfredo Couto Amaral





NOTAS:
1.Fátima Alves, José Arêdes, José Carvalho, Pensar Azul, Cacém, Texto Editora, 2007, p 3.
2. Gaston Bachelard, o Ar e os Sonhos, São Paulo, Martins Fontes, 1990, p.173.
3. Merleau-Ponty, Fenomenologia da Percepção, São Paulo, Martins Fontes, 1994, p 283.
4. Wittgenstein, Anotações sobre as Cores, Lisboa, Edições 70, p 33.
5. Carlos Alfredo Couto Amaral, Desflorar da Flor de Sal, Lisboa, Editorial Minerva, 2010