sábado, 24 de julho de 2021

ENTREVISTA DO LUÍS ASCENÇÃO - blog oserimperfeito

 



1. O que é que o seu avô representa para si?

 Convém referir que há uma diferença notória entre a personagem literária e o homem real com o qual convivi. Um centra-se sobre a imagem de traços que são de algum modo exagerados. A pessoa real está marcada pelos vícios e virtudes de um ser humano real. Em Lugar d’Avós o ‘Bispo’ é uma representação ficcional, que destaca o papel do avô-bom – tentei reporta-me à criança de onze anos e não ao homem de sessenta e um anos, que sou hoje. Sei distinguir a personagem que reinventei face à “personagem real”, tal como ele se me apresentou. No livro fui sincero em relação ao que vivi, já no que se refere a António do Couto, o meu modelo… Não sou tão perentório, até por achar que ele tinha dimensões morais, que correspondiam à “flor que não se devia cheirar”. Não obstante, para a criança que fui, o que escrevo em Lugar d’Avós é autêntico: essa personagem representou o mediador, que me permitiu libertar-me e emancipar-me face ao claustrofóbico mundo paterno. 


2. Que sonhos tinha nessa época em que era o “falinhas mansas”? 

 Os sonhos eram incomensuráveis e indescritíveis. Eu sonhava desde que acordava até adormecer. Nesse caso, chegavam outros sonhos por vezes inquietos. Estar em devaneio nos sonhos diurnos era um modo de me projetar no mundo. Representava os mil heróis, das personagens que viviam em delírios intermináveis, uns substituíam os outros, de modo a descansar daqueles que me deixavam exaurido. O que o mundo real negava ou sonegava encontrava a compensação no devaneio. Recordo que sonhava sobre as idades futuras para realizar as aspirações infantis. A fragilidade ganhava asas noutra constelação onde se realizava o prazer e o poder – coisas da fantasia. 


 3. O seu pai era um homem autoritário, ter-lhe-ia partido as asas pelo caminho? 

De facto o meu pai era autoritário, ele exercia o papel e estatuto do ditador de trazer por casa. Embora na luta contra ele se tenha partido alguma asa da ilusão; ganhei, em contrapartida, as armaduras da realidade. A vontade de vencer, de sobreviver, e de me afirmar marcavam-me a fogo. Quando alguém nos quer negar, se nos conseguimos recompor, de certo modo, encontramos a energia interior. O papel do avô foi auxiliar-me a restituir a vontade de vencer, ao mostrar-me que existiam outros mundos alternativos, para lá do que psicoticamente o mundo do pai apresentava-se como único. Todavia, era um homem inteligente. Sabia que naquele mundo para um ser singrar era necessário tornar-se um lutador. Creio que, voluntariamente, ele fez de mim um lutador incansável. Andaria eu pelos dezanove anos quando o confrontei com a educação que me dera, e a sua resposta foi credível: “Fiz o melhor que sabia e que podia em relação à tua educação. Mas agora és crescido, podes fazer de ti o que bem entenderes!”. Ou seja, o seu princípio e fundo não eram maus. Os valores pedagógicos que o norteavam eram bastante diferentes dos atuais. E quem terá a razão definitiva nessa área tão incerta?

4. Que papel teve esse mundo agressivo no processo do seu desenvolvimento? 

 Teve um papel enorme. Primeiro, fragilizou-me, quase me destruiu. Depois, tornou-se numa escola de evolução rápida: com 20 anos eu já trabalhava e tinha autonomia financeira, sabia que não podia contar com o apoio que não fosse o que conquistasse, ou o que buscasse noutras paragens. Varreu qualquer imagem de dependência ou de ilusória segurança. Descobri que apenas podia contar comigo, teria que me empenhar. Aprendi rapidamente! Se não o tivesse feito teria sucumbido ou teria amochado perante aquele progenitor, que me infernizara. Das últimas conversas que tive com ele, antes de falecer (com uma embolia cerebral), confessou que tinha orgulho em mim, pois contra todas as expetativas eu tinha triunfado, tornara-me um verdeiro homem. Terminara o curso sem qualquer auxílio seu, fizera a tropa… enfim, sabia lutar por mim mesmo. 

 5. Que efeitos psicológicos teve esse ambiente agressivo no processo de amadurecimento? 

Os efeitos psicológicos no adolescente foram brutais. Fragilizou-me. Num segundo momento, levou-me a sentir que eu apenas tinha a alternativa de ultrapassar esse ambiente conquistando a autonomia. Uma das quezílias frontais foi quando me ameaçou que me colocava na rua se eu não me submetesse a ajudá-lo numa propriedade agrária, quando eu tinha marcada uma reunião do grupo de arqueologia, que ajudara a fundar. Arrisquei tudo, não me submetendo à sua ameaça e comecei a realizar os meus projetos de vida. Não me queria submeter e ser a imagem do papel que me reservava de joguete para os seus sonhos. Descobri que era mais forte do que me imaginara, aí vencia. Ele não me colocou na rua e passei a fazer paralelamente o processo de autonomização. 

 6. Que emoções lhe foram dadas a viver quando recebeu a notícia da morte do seu avô? 

Senti logo a perda de um mundo! E que o meu universo não seria igual ao anterior. Sofri a desolação e a impotência, mas ao mesmo tempo a aceitação de outra lei básica da vida: somos frágeis enquanto seres vivos. Desmoronaram ilusões, ao mesmo tempo para contrariar: surgem desejos urgentes de realizar os projetos fundamentais da vida. 

7. Lembra-se do ano quando foi desapropriada a quinta? Qual o estado de espírito? 

 Creio que foi em 1977 que a quinta foi finalmente desapropriada. Os meus avós já a tinham “abandonado”, devido à idade avançada foram viver para Cubos. Senti que os paraísos existem e que as instituições os podem desfazer através de uma ordem soberana. A Quinta do Bispo detinha uma enorme jazida de urânio. O pai e o tio, por outro lado, tinham interesses em que aquele mundo fosse desfeito. Queriam rentabilizar, pois através do capital recebido devido às indeminizações realizariam certos sonhos. Eu e o meu irmão sentíamos que nos cortavam as entranhas da alma. E assim desaparecera o paraíso! Segui o esventramento da terra, visitava com regularidade a quinta, quando ia de férias à Beira Alta. A curiosidade era saber como era constituído o ventre do mundo. Porém, o sentimento era de desolação, posto que os anéis do inferno surgiram onde estivera o éden. Para mais o produto extraído, o urânio, alimentava a indústria bélica das bombas atómicas. 

8. Há uma questão que coloca no livro: “por que não deixaram puro aquele paraíso?”. Não acha viável a exploração mineira em favor do desenvolvimento económico do país e da região, no caso, da Beira Alta? 

Apesar de não ter uma visão ingénua do mundo, acredito que o narrador literário tem o absoluto direito em tê-la. Posso entender que para a maioria poder sonhar, outros verão os seus sonhos destruídos. No entanto, esse paraíso foi desfeito por interesses que não acho sustentáveis, dado que a exploração mineira foi efetuada em favor do desenvolvimento do poderio atómico, que nem beneficiava o país nem o mundo. Logo, também não serviram as populações locais. Serviram apenas o estado que durante mais de uma década retirou milhares de toneladas de urânio, que contribuíram para atenuar a dívida externa. Todavia, esse foi um primeiro passo de uma escalada de industrialização à volta, surgiu a SIAFE, uma fábrica gigantesca de conglomerados de madeira; um mega ferro-velho… Algumas empresas justificam-se por empregarem as populações, mas serão razões suficientes para levarem a uma inquietante degradação ambiental? 

9. Quando começa a dedicar-se à escrita? Que papel desempenhou na construção da sua pessoa?

 Comecei a dedicar-me à escrita autodidata aos doze anos – escrevia poemas num caderno pautado; no início da adolescência comecei a redigir um diário que praticamente nunca abandonei. A escrita e a construção da minha pessoa são inseparáveis. Lavrei 240 cadernos de diários. Seria eu o mesmo sem essas referências quotidianas ao modo de me sentir e pensar? Claramente que NÃO! Ainda hoje sinto, quando fico um dia sem escrever, parece que o meu ser fica confuso e baço. Um dos próximos projetos literários a concretizar implica a edição de parte do meu diário, com o título: Dias a Menos. Trata-se de um diário romanceado, que percorre os anos que vão de 1983 a 2000. Em boa parte sou o ser que se vai revelando na escrita. Como disse um dos meus editores “é uma escrita redigida a sangue”. 

 10. Ainda se lembra do ano em que a quinta do seu avô é restituída à sua família? 

A informação que tenho é 2011. A Quinta do Bispo foi várias vezes prometida, mas quanto à sua restituição parece difícil, se não inviável, pois nem conseguiram ainda concluir a reabilitação ambiental… Já não acredito que nos seja devolvida. O tempo dos sonhos não volta atrás, e o eterno retorno não passa de um mito consolador