sábado, 31 de dezembro de 2016

UTOPIA 500 ANOS

The most tragic form of loss isn’t the loss of security; it’s the loss of the capacity to imagine that things could be different
                        Ernst Bloch, Principle of Hope.

             O que é raro é uma sociedade sã e sabiamente organizada” Tomás More

Abordar a utopia hoje, revisitando a obra com 500 anos de Tomás More, é um modo de avaliar criticamente a sociedade contemporânea, na medida em que esse conceito identifica o espaço do sonho onde se idealiza uma sociedade justa e perfeita que restabeleça a harmonia original. Pretende-se ao evocar a utopia explorar valores e ideais, pretendidos para a construção de um mundo melhor. Sonha-se com um mundo melhor quando o ponto de partida é uma sociedade insatisfatória (com a ausência de justiça e de igualdade). Na utopia há a preocupação com a partilha equitativa da propriedade, dos bens, dos cargos e do tempo. Trata-se, portanto, de idealizar uma sociedade perfeita que não se encontra concretizada em nenhum espaço, deste modo coloca-nos à frente uma espécie de protótipo para a execução do que se pretende concretizar.

Impõe-se neste relatório uma reflexão critica a partir do Congresso Tomás Moro e o sonho de um mundo melhor nos 500 anos da Utopia, efetuado na Universidade Católica, onde daremos destaque, entre muitas outras, às palestras de Luísa Soares, João Duque, Joaquim Melro.

1. Luísa Soares em “O círculo utópico, ficção, realidade” pergunta à partida como pode da ficção proceder uma nova sociedade reformada. Se a utopia trata de um sonho desperto, então evoca o refúgio para o homem abandonado – um sedativo para aliviar a dor – ao recolocar o ideal de uma nova ‘civitate’ que o traga de volta à ordem harmoniosa. Na Utopia de Moro, segundo a conferencista, há uma estratificação de imagens que superlativam o real, a ficção, o possível, o ideal, o imaginário, reconduzindo a outra ordem de realidade, isto é, a uma ilha fora do espaço e do tempo. Constata-se aí uma circularidade entre o real a que se escapa e uma outra realidade em potência que abre espaço à intenção criativa e ao distanciamento. 

Dinamiza-se uma dimensão cinética de escalada no sentido de um maior aperfeiçoamento da liberdade e da justiça, “A Utopia contém dentro de si mesma, a possibilidade de uma outra utopia. Jogos de espaço, jogos de regiões do ser, de modalidades – ficção, irreal, possível, e real. É este jogo que está em causa na utopia. E são estas categorias transcendentais que a caracterizam e a distinguem da ideologia.” Para lá de um método arqueológico, ou construtivista, reivindica-se um método ontológico que retrate os seres que habitam a Utopia, tentando na circularidade dinâmica relacionar o “real”, o “possível” e o “imaginário”. Ou seja, o real possível e o real impossível que ultrapassa as fronteiras do real para dar espaço à criação do espírito humano. “Como pode da ficção proceder uma nova sociedade reformada? Se isso fosse possível, significaria que o que era aparentemente irreal, apesar de o ser, era possível e poderia vir a ser (…) novos meios para atingir a emancipação da humanidade”. 

Desse ‘topos’ sem lugar pode-se criticar o mundo real (sem ser sancionado), pois parte-se de um ponto de vista centrado na fantasia (em alternativa ao real), isto é, um mundo imaginário no qual nunca viveremos. Permitindo dar conta do mundo real também aberto aos mundos possíveis da arte, da ciência e da política. E evoca Italo Calvino nas Cidades Invisíveis, onde Kublai Kan pergunta, se existem as cidades invisíveis, ao que Marco Polo responde, que existem mas têm um segredo, nunca ser possível regressar a elas – logo há uma real impossibilidade epistemológica (inclusive para a utopia?).

2. João Duque parte do já clássico texto de Paul Ricoeur, intitulado precisamente “Ideologia e utopia”, que analisa não apenas a diversidade desses conceitos, mas sobretudo a sua mútua relação, como base fundamental da dimensão política do humano. Considera que Ricoeur relaciona de forma dicotómica utopia e ideologia. A utopia projeta a imagem do real de algures para nenhures, colocando a realidade em questão à maneira de uma alternativa face ao poder estabelecido; isto é, enquanto atitude negativa a utopia despreza a ligação à ação, mas permite a abertura crítica para outra realidade. 

Constatando-se uma crise na fundamentação da política que é paralela à crise dos valores, oscilando entre o exercício do poder pelo poder, face à alternativa viável da compaixão pelo outro. Já a ideologia estabelece uma integração simbólica que passa pela sociedade concreta, procurando legitimar formas de poder, arriscando eventualmente passar pela deturpação do poder real: “A primeira função atribuída à ideologia é a de reproduzir uma imagem invertida da realidade (….) a patologia da ideologia consistia na sua afinidade com a ilusão, dissimulação, a mentira, a patologia da utopia consiste numa loucura inversa” (Ricoeur p. 382 e segs). Se a ideologia remete para a alienação, já o contraponto da utopia representa a abertura à esperança na renovação, sem a desilusão de uma concretização frustrante: “(…) a utopia é aquilo que impede o horizonte de expetativa de se fundir com o campo da experiência. É aquilo que mantém o afastamento entre esperança e tradição” (Ricoeur p. 384). Joga-se aqui a relação entre a ação concreta protagonizada pela ideologia e a expetativa sonhada pela utopia, ou seja, entre o peso do concreto e leveza do ideal.

3. Joaquim Melro, na exegese de Paulo Freire, crê paradoxalmente ser possível o impossível pensar o ser humano sem ser na utopia que corresponde à esperança de querer ser mais. Ou seja, a utopia envolve um compromisso com a praxis de libertação do ser humano que inacabado procura superar o seu estado atual. Na experiência de si no contexto pedagógico “podemos equivocarmo-nos, podemos errar, mentir é que nunca” a historicidade de ser humano envolve a construção veraz do futuro através de uma praxis libertadora que implica sonhá-lo e desenvolvê-lo enquanto ideal prévio. Daí as caraterísticas do professor e do aluno centrarem-se na curiosidade rigorosa, dialógica e argumentativa. A dialética neste duplo encadeamento transforma o mundo a partir da transformação do próprio sujeito humano concreto. 

E o papel da crítica deve desmontar a consciência mágica, ingénua, fanatizada que redunde em egocentrismo. Posto isto, deve-se desenvolver uma relação pedagógica a partir da compreensão para poder vir a julgar e a decidir bem, o que valoriza a dignidade humana. Assim, há abertura ao futuro (“futuridade”) num esforço de nos recuperarmos a nós; o mesmo é dizer, a utopia denuncia o que vai mal em nós e no mundo, apresentando através de uma prática consciente as soluções onde a grandeza ética consiste em fazer emergir o sonho sonhado – o diálogo emerge como uma prática pedagógica ao serviço da solução utópica proposta por Paulo Freire: 

“Uma pedagogia que faça com que os homens e as mulheres, tantas vezes esquecidos de si, se reinventem e permaneçam na utopia do que é são: HUMANOS (…). Uma pedagogia, porque do oprimido, exija que se exerça na esperança e se afirme na autonomia, raiz fundadora dessa praxis que há-de, finalmente, levar a humanidade a (pros)seguir os trilhos da utopia suprema: a liberdade”(Freire,1987,p.52). 

Logo, a utopia implica a pedagogia libertária.

Conclusão: neste congresso, a reflexão da Utopia de Tomás Moro permitiu representá-la como crítica e espelho invertido da realidade vigente. Há uma deslocação da ação para o futuro promissor, passando-se de uma forma da vida desprovida para uma dimensão vivida na imaginação, no sonho e na arte, contrariando o mundo opressivo e injusto. A utopia assume uma axiologia crítica face ao real, possibilitando a abertura ao imaginário. 

Enfim, alguns participantes, como Maria Dovigo, defenderam que a condição humana utópica deve orientar-se para nos tornarmos poetas, enquanto alternativa face ao homem alienado – o que permite relacionar com a obra poética Náutica para Náufragos Desafogados (no prelo): Um mundo melhor não é um mundo ideal / o ideal está aprisionado ao modelo perfeito / é utopia sofrida (Carlos Couto Amaral), sem que tal implique deixarmos permanentemente de idealizar mundos melhores libertadores: das opressões, das alienações e das injustiças.