sábado, 3 de abril de 2010

Exposição pintura de Sérgio Amaral

“Massa é todo aquele que não se valoriza a si mesmo – no bem e no mal –, mas que sente como ‘toda a gente’, e, entretanto não se angustia por razões especiais, mas se sente à vontade ao sentir-se idêntico aos demais.
(…) Há duas categorias de criaturas: as que exigem muito de si e acumulam sobre si mesmas dificuldades e deveres, e as que não exigem nada de especial (…) bóias que vão à deriva”.
Ortega Y Gasset, A Rebelião das Massas.

Ao ser solicitado a integrar a redacção do catálogo da exposição do Sérgio Amaral, proponho efectuar uma reflexão livre em torno do mimetismo e da liderança, que radicam no imperativo: segue-me! Sendo este o título que o artista escolheu como unidade temática da sua presente exposição. Onde apresenta mais de uma centena de obras pictóricas e esculturais – com o propósito de nos sensibilizar à cogitação sobre o fenómeno das massas no comportamento contemporâneo.

É significativo que o mesmo padrão de figuras, apontado pelo autor, seja transfigurado em cada quadro como seres incapazes de se individualizarem. Se, o artista incentiva à reconfiguração da imaginação em diversificados contextos; por outro, quer incomodar-nos com a esgotante réplica das mesmas formas, e assim forçar-nos a pensar.

Sentimos o repto, e assim compelidos torna-se inevitável explora este desafio.
Detectamos, antes de mais, que a imposição “segue-me”, esconde um imperativo para as massas, em oposição ao princípio ético de ousar pensar por ti mesmo (“sê tu mesmo”). O imperativo em análise representa a subordinação a um tipo de projecto de liderança, que exclui a autonomia do pensar e do agir. Estando também contaminado por uma falácia, que apela à ilusão: “Se te falta algo na vida, e se queres alcançar um desígnio, como um mundo melhor, então segue-me”. Nos casos de má fé da liderança, carentes de uma boa consciência, quantas vezes vemos cegos a guiarem outros cegos.

Lembremos o conto infantil onde, numa versão, um tocador de flauta mágica arrastou atrás de si um grupo de crianças que depois manteve cativas. Noutra variante fez-se seguir pela multidão das ratazanas. No fim exterminou-as. Se, neste caso, resolveu com a hipnose colectiva um problema de sanidade pública. Noutro relato, o flautista converte as pessoas que o seguem em ratazanas para depois as empurrar para o abismo.
Na realidade, o ser humano tem exteriorizado nos palcos sociais procedimentos de mimetismo. Segundo a etologia, tal enraizasse no antigo comportamento animal, como nos movimentos dos cardumes de peixes; no voo dos bandos de aves; nas deslocações das alcateias de lobos; nas pragas de gafanhotos… Todos parecem obedecer a um preceito: “imitar para sobreviver, dissimular para vencer”.

O fenómeno do mimetismo elementar funda-se também nos padrões de imitação entre grupos de neurónios. Ou seja, o que um grupo das células cerebrais faz, o outro grupo imita. Reproduzindo esta função, uma criança com alguns dias imita certos gestos dos progenitores – coloquem a língua de fora, e confirmem a reacção do bebé.
No comportamento humano, a socialização leva os indivíduos a imitarem os outros, para se integrarem e assim serem estimados. Revelando duas vertentes, uma positiva conforme promove o desenvolvimento humano, apelando à socialização e ao aperfeiçoamento; e, a outra negativa, por limitar o ser humano, levando à servidão e à inércia.

O imperativo segue-me, ganha ainda um registo pejorativo, se o fenómeno das massas conduz à intolerância e à guerra, como no exemplo radical do nazismo. Ao seguir o líder, quantas vezes se perde o sentido do dever, convertendo em actividade criminosa que viola os direitos do homem, conduzindo o belicismo a sacrifícios não sancionados minimamente por finalidades legítimas. Portanto, a veneração e o receio aos chefes, pode levar os guerreiros a teme-los mais a eles do que ao inimigo e à própria morte. E, assim, seguem cegamente as suas ordens, em muitos casos, por veneração e por medo.

Perguntamos, todavia, se esse fenómeno da má formação recai apenas num escol de degenerados. Na verdade, trata-se de um acontecimento mais frequente e genérico, como ilustra a experiência da caixa psicológica, elaborada por um grupo de cientistas norte-americanos, onde testaram centenas de cidadãos comuns, sob a experiência da voz do comando. Ou seja, instigados por ordens, as pessoas aferidas aplicaram choques eléctricos a outros, sempre que estes respondiam erradamente a um questionário. Se bem que ignorassem que o dito choque fosse uma simulação, contudo, apenas uma minoria dos indivíduos testados, se recusou a obedecer a essa ordem mal dada.

Posto isto, uma grande parte dos seres humanos pode cometer os actos mais bárbaros e indignos, se for compelido pelas ordens de comando, sem tão pouco questionar a legitimidade de tal atrocidade.

Percebamos ainda essa outra voz de comando que sai como oráculo da caixa mágica da TV, e de outros meios de comunicação, que se mal controlados deformam a opinião pública. Neste contexto, quem abdica de um comportamento ético, renunciando ao juízo racional crítico, de alguma forma vende a alma ao diabo, contribuindo para o clima de barbaria irracional.

Embora a liderança siga maioritariamente os seus deveres deontológicos, e, assim promova grandes empreendimentos humanos. Por isso, o mimetismo será positivo, ao imitar legítimos padrões de conduta, por exemplo: a aprendizagem do civismo social; a preservação ambiental; a solidariedade contra os abusos de poder; a mobilização do auxílio a populações de zonas de calamidade. Portanto, nesses casos, se for bem reflectida, devemos incentivar e dar luz verde à ordem: segue-me.

De modo paradoxal, para fazer abalar algumas certezas inquestionáveis, dizia Nietzsche que, apenas sabe genuinamente mandar quem aprendeu a obedecer com correcção. Mas, ao contrário, quando se arruína a actividade crítica, tudo se pode perder, pois rapidamente surge a manipulação. Quem é formado para obedecer, se não é alertado para impedir a obediência ao ‘mal’ se este aparece mascarado de ‘bem’; também cometerá o ‘mal’, se a tal for instigado. Em muitos casos, o limiar entre o ‘bem e o mal’ é uma ténue linha mal demarcada. Despertemos, pois os moralismos irreflectidos rapidamente decaem na defesa de padrões totalitaristas pejados de ódio e de intolerância.

Na actualidade, também certos regimes democráticos nos inquietam, se dominados pela opinião pública, e se esta for forjada através da propaganda, e assim criarem um véu sofisticado de simulacros, onde a mentira e a verdade aparecem indistintas.
De facto, os sinais do tempo mostram que estamos nas mãos da opinião pública, que segue mais o parecer em detrimento do ser. E quando aí se procura o princípio de identidade entre ser e o parecer, não se verifica apenas a reiteração da verdade, mas antes o domínio unanimista, onde emerge a tentativa de anular a diversidade das formas de o ser humano se apresentar enquanto agente criativo.

Portanto, se um modelo de democracia apela à liberdade, e, no entanto, indevidamente torna-se paternalista, aconselhando: “Sê bom rapaz, transforma-te num conformista, anulando a tua identidade em favor do bom nome da mediania.” Então, para além de contraditória, estamos face a uma fraca democracia...

Ao estabelecer-se a médio-cracia, armadilha-se o caminho da busca da própria identidade, devido à imposição de um padrão politicamente correcta sobre o único modo de se ser – assombrando assim o fantasma da unanimidade para mil anos. Portanto, alertamos nós agora: Cuidado Zé-ninguém… que te podem impor o totalitarismo democrático da via única, transformando-te num homem sem qualidades. Sem te incentivarem ao esforço e ao trabalho. Apenas com estes recursos, criteriosamente exercidos, se obtém uma genuína transformação, que gera continuamente o progresso, abrindo novas modalidades ao ser humano para se revelar e valorizar.

Face ao exposto, termino com as palavras do poeta José Régio, respondendo às vozes doces que me dizem, segue-me e “Vem por aqui (…)
Não sei por onde vou,
não sei para onde vou,
só sei que não vou por ai.”

Nesta temática crítica, a arte cumpre integralmente a sua função, pois para lá de encantar também veio desassossegar e despertar. Reconheço, enfim, ao Sérgio Amaral o pretexto que nos deu com esta sua grandiosa exposição artística, para reflectirmos acerca de algumas das colossais inquietações do nosso tempo.

Carlos Alfredo Couto Amaral

1 comentário: