“Massa é todo aquele que não se valoriza a si mesmo – no bem e no mal –, mas que sente como ‘toda a gente’, e, entretanto não se angustia por razões especiais, mas se sente à vontade ao sentir-se idêntico aos demais.
(…) Há duas categorias de criaturas: as que exigem muito de si e acumulam sobre si mesmas dificuldades e deveres, e as que não exigem nada de especial (…) bóias que vão à deriva”.
Ortega Y Gasset, A Rebelião das Massas.
Ao ser solicitado a integrar a redacção do catálogo da exposição do Sérgio Amaral, proponho efectuar uma reflexão livre em torno do mimetismo e da liderança, que radicam no imperativo: segue-me! Sendo este o título que o artista escolheu como unidade temática da sua presente exposição. Onde apresenta mais de uma centena de obras pictóricas e esculturais – com o propósito de nos sensibilizar à cogitação sobre o fenómeno das massas no comportamento contemporâneo.
É significativo que o mesmo padrão de figuras, apontado pelo autor, seja transfigurado em cada quadro como seres incapazes de se individualizarem. Se, o artista incentiva à reconfiguração da imaginação em diversificados contextos; por outro, quer incomodar-nos com a esgotante réplica das mesmas formas, e assim forçar-nos a pensar.
Sentimos o repto, e assim compelidos torna-se inevitável explora este desafio.
Detectamos, antes de mais, que a imposição “segue-me”, esconde um imperativo para as massas, em oposição ao princípio ético de ousar pensar por ti mesmo (“sê tu mesmo”). O imperativo em análise representa a subordinação a um tipo de projecto de liderança, que exclui a autonomia do pensar e do agir. Estando também contaminado por uma falácia, que apela à ilusão: “Se te falta algo na vida, e se queres alcançar um desígnio, como um mundo melhor, então segue-me”. Nos casos de má fé da liderança, carentes de uma boa consciência, quantas vezes vemos cegos a guiarem outros cegos.
Lembremos o conto infantil onde, numa versão, um tocador de flauta mágica arrastou atrás de si um grupo de crianças que depois manteve cativas. Noutra variante fez-se seguir pela multidão das ratazanas. No fim exterminou-as. Se, neste caso, resolveu com a hipnose colectiva um problema de sanidade pública. Noutro relato, o flautista converte as pessoas que o seguem em ratazanas para depois as empurrar para o abismo.
Na realidade, o ser humano tem exteriorizado nos palcos sociais procedimentos de mimetismo. Segundo a etologia, tal enraizasse no antigo comportamento animal, como nos movimentos dos cardumes de peixes; no voo dos bandos de aves; nas deslocações das alcateias de lobos; nas pragas de gafanhotos… Todos parecem obedecer a um preceito: “imitar para sobreviver, dissimular para vencer”.
O fenómeno do mimetismo elementar funda-se também nos padrões de imitação entre grupos de neurónios. Ou seja, o que um grupo das células cerebrais faz, o outro grupo imita. Reproduzindo esta função, uma criança com alguns dias imita certos gestos dos progenitores – coloquem a língua de fora, e confirmem a reacção do bebé.
No comportamento humano, a socialização leva os indivíduos a imitarem os outros, para se integrarem e assim serem estimados. Revelando duas vertentes, uma positiva conforme promove o desenvolvimento humano, apelando à socialização e ao aperfeiçoamento; e, a outra negativa, por limitar o ser humano, levando à servidão e à inércia.
O imperativo segue-me, ganha ainda um registo pejorativo, se o fenómeno das massas conduz à intolerância e à guerra, como no exemplo radical do nazismo. Ao seguir o líder, quantas vezes se perde o sentido do dever, convertendo em actividade criminosa que viola os direitos do homem, conduzindo o belicismo a sacrifícios não sancionados minimamente por finalidades legítimas. Portanto, a veneração e o receio aos chefes, pode levar os guerreiros a teme-los mais a eles do que ao inimigo e à própria morte. E, assim, seguem cegamente as suas ordens, em muitos casos, por veneração e por medo.
Perguntamos, todavia, se esse fenómeno da má formação recai apenas num escol de degenerados. Na verdade, trata-se de um acontecimento mais frequente e genérico, como ilustra a experiência da caixa psicológica, elaborada por um grupo de cientistas norte-americanos, onde testaram centenas de cidadãos comuns, sob a experiência da voz do comando. Ou seja, instigados por ordens, as pessoas aferidas aplicaram choques eléctricos a outros, sempre que estes respondiam erradamente a um questionário. Se bem que ignorassem que o dito choque fosse uma simulação, contudo, apenas uma minoria dos indivíduos testados, se recusou a obedecer a essa ordem mal dada.
Posto isto, uma grande parte dos seres humanos pode cometer os actos mais bárbaros e indignos, se for compelido pelas ordens de comando, sem tão pouco questionar a legitimidade de tal atrocidade.
Percebamos ainda essa outra voz de comando que sai como oráculo da caixa mágica da TV, e de outros meios de comunicação, que se mal controlados deformam a opinião pública. Neste contexto, quem abdica de um comportamento ético, renunciando ao juízo racional crítico, de alguma forma vende a alma ao diabo, contribuindo para o clima de barbaria irracional.
Embora a liderança siga maioritariamente os seus deveres deontológicos, e, assim promova grandes empreendimentos humanos. Por isso, o mimetismo será positivo, ao imitar legítimos padrões de conduta, por exemplo: a aprendizagem do civismo social; a preservação ambiental; a solidariedade contra os abusos de poder; a mobilização do auxílio a populações de zonas de calamidade. Portanto, nesses casos, se for bem reflectida, devemos incentivar e dar luz verde à ordem: segue-me.
De modo paradoxal, para fazer abalar algumas certezas inquestionáveis, dizia Nietzsche que, apenas sabe genuinamente mandar quem aprendeu a obedecer com correcção. Mas, ao contrário, quando se arruína a actividade crítica, tudo se pode perder, pois rapidamente surge a manipulação. Quem é formado para obedecer, se não é alertado para impedir a obediência ao ‘mal’ se este aparece mascarado de ‘bem’; também cometerá o ‘mal’, se a tal for instigado. Em muitos casos, o limiar entre o ‘bem e o mal’ é uma ténue linha mal demarcada. Despertemos, pois os moralismos irreflectidos rapidamente decaem na defesa de padrões totalitaristas pejados de ódio e de intolerância.
Na actualidade, também certos regimes democráticos nos inquietam, se dominados pela opinião pública, e se esta for forjada através da propaganda, e assim criarem um véu sofisticado de simulacros, onde a mentira e a verdade aparecem indistintas.
De facto, os sinais do tempo mostram que estamos nas mãos da opinião pública, que segue mais o parecer em detrimento do ser. E quando aí se procura o princípio de identidade entre ser e o parecer, não se verifica apenas a reiteração da verdade, mas antes o domínio unanimista, onde emerge a tentativa de anular a diversidade das formas de o ser humano se apresentar enquanto agente criativo.
Portanto, se um modelo de democracia apela à liberdade, e, no entanto, indevidamente torna-se paternalista, aconselhando: “Sê bom rapaz, transforma-te num conformista, anulando a tua identidade em favor do bom nome da mediania.” Então, para além de contraditória, estamos face a uma fraca democracia...
Ao estabelecer-se a médio-cracia, armadilha-se o caminho da busca da própria identidade, devido à imposição de um padrão politicamente correcta sobre o único modo de se ser – assombrando assim o fantasma da unanimidade para mil anos. Portanto, alertamos nós agora: Cuidado Zé-ninguém… que te podem impor o totalitarismo democrático da via única, transformando-te num homem sem qualidades. Sem te incentivarem ao esforço e ao trabalho. Apenas com estes recursos, criteriosamente exercidos, se obtém uma genuína transformação, que gera continuamente o progresso, abrindo novas modalidades ao ser humano para se revelar e valorizar.
Face ao exposto, termino com as palavras do poeta José Régio, respondendo às vozes doces que me dizem, segue-me e “Vem por aqui (…)
Não sei por onde vou,
não sei para onde vou,
só sei que não vou por ai.”
Nesta temática crítica, a arte cumpre integralmente a sua função, pois para lá de encantar também veio desassossegar e despertar. Reconheço, enfim, ao Sérgio Amaral o pretexto que nos deu com esta sua grandiosa exposição artística, para reflectirmos acerca de algumas das colossais inquietações do nosso tempo.
Carlos Alfredo Couto Amaral
(…) Há duas categorias de criaturas: as que exigem muito de si e acumulam sobre si mesmas dificuldades e deveres, e as que não exigem nada de especial (…) bóias que vão à deriva”.
Ortega Y Gasset, A Rebelião das Massas.
Ao ser solicitado a integrar a redacção do catálogo da exposição do Sérgio Amaral, proponho efectuar uma reflexão livre em torno do mimetismo e da liderança, que radicam no imperativo: segue-me! Sendo este o título que o artista escolheu como unidade temática da sua presente exposição. Onde apresenta mais de uma centena de obras pictóricas e esculturais – com o propósito de nos sensibilizar à cogitação sobre o fenómeno das massas no comportamento contemporâneo.
É significativo que o mesmo padrão de figuras, apontado pelo autor, seja transfigurado em cada quadro como seres incapazes de se individualizarem. Se, o artista incentiva à reconfiguração da imaginação em diversificados contextos; por outro, quer incomodar-nos com a esgotante réplica das mesmas formas, e assim forçar-nos a pensar.
Sentimos o repto, e assim compelidos torna-se inevitável explora este desafio.
Detectamos, antes de mais, que a imposição “segue-me”, esconde um imperativo para as massas, em oposição ao princípio ético de ousar pensar por ti mesmo (“sê tu mesmo”). O imperativo em análise representa a subordinação a um tipo de projecto de liderança, que exclui a autonomia do pensar e do agir. Estando também contaminado por uma falácia, que apela à ilusão: “Se te falta algo na vida, e se queres alcançar um desígnio, como um mundo melhor, então segue-me”. Nos casos de má fé da liderança, carentes de uma boa consciência, quantas vezes vemos cegos a guiarem outros cegos.
Lembremos o conto infantil onde, numa versão, um tocador de flauta mágica arrastou atrás de si um grupo de crianças que depois manteve cativas. Noutra variante fez-se seguir pela multidão das ratazanas. No fim exterminou-as. Se, neste caso, resolveu com a hipnose colectiva um problema de sanidade pública. Noutro relato, o flautista converte as pessoas que o seguem em ratazanas para depois as empurrar para o abismo.
Na realidade, o ser humano tem exteriorizado nos palcos sociais procedimentos de mimetismo. Segundo a etologia, tal enraizasse no antigo comportamento animal, como nos movimentos dos cardumes de peixes; no voo dos bandos de aves; nas deslocações das alcateias de lobos; nas pragas de gafanhotos… Todos parecem obedecer a um preceito: “imitar para sobreviver, dissimular para vencer”.
O fenómeno do mimetismo elementar funda-se também nos padrões de imitação entre grupos de neurónios. Ou seja, o que um grupo das células cerebrais faz, o outro grupo imita. Reproduzindo esta função, uma criança com alguns dias imita certos gestos dos progenitores – coloquem a língua de fora, e confirmem a reacção do bebé.
No comportamento humano, a socialização leva os indivíduos a imitarem os outros, para se integrarem e assim serem estimados. Revelando duas vertentes, uma positiva conforme promove o desenvolvimento humano, apelando à socialização e ao aperfeiçoamento; e, a outra negativa, por limitar o ser humano, levando à servidão e à inércia.
O imperativo segue-me, ganha ainda um registo pejorativo, se o fenómeno das massas conduz à intolerância e à guerra, como no exemplo radical do nazismo. Ao seguir o líder, quantas vezes se perde o sentido do dever, convertendo em actividade criminosa que viola os direitos do homem, conduzindo o belicismo a sacrifícios não sancionados minimamente por finalidades legítimas. Portanto, a veneração e o receio aos chefes, pode levar os guerreiros a teme-los mais a eles do que ao inimigo e à própria morte. E, assim, seguem cegamente as suas ordens, em muitos casos, por veneração e por medo.
Perguntamos, todavia, se esse fenómeno da má formação recai apenas num escol de degenerados. Na verdade, trata-se de um acontecimento mais frequente e genérico, como ilustra a experiência da caixa psicológica, elaborada por um grupo de cientistas norte-americanos, onde testaram centenas de cidadãos comuns, sob a experiência da voz do comando. Ou seja, instigados por ordens, as pessoas aferidas aplicaram choques eléctricos a outros, sempre que estes respondiam erradamente a um questionário. Se bem que ignorassem que o dito choque fosse uma simulação, contudo, apenas uma minoria dos indivíduos testados, se recusou a obedecer a essa ordem mal dada.
Posto isto, uma grande parte dos seres humanos pode cometer os actos mais bárbaros e indignos, se for compelido pelas ordens de comando, sem tão pouco questionar a legitimidade de tal atrocidade.
Percebamos ainda essa outra voz de comando que sai como oráculo da caixa mágica da TV, e de outros meios de comunicação, que se mal controlados deformam a opinião pública. Neste contexto, quem abdica de um comportamento ético, renunciando ao juízo racional crítico, de alguma forma vende a alma ao diabo, contribuindo para o clima de barbaria irracional.
Embora a liderança siga maioritariamente os seus deveres deontológicos, e, assim promova grandes empreendimentos humanos. Por isso, o mimetismo será positivo, ao imitar legítimos padrões de conduta, por exemplo: a aprendizagem do civismo social; a preservação ambiental; a solidariedade contra os abusos de poder; a mobilização do auxílio a populações de zonas de calamidade. Portanto, nesses casos, se for bem reflectida, devemos incentivar e dar luz verde à ordem: segue-me.
De modo paradoxal, para fazer abalar algumas certezas inquestionáveis, dizia Nietzsche que, apenas sabe genuinamente mandar quem aprendeu a obedecer com correcção. Mas, ao contrário, quando se arruína a actividade crítica, tudo se pode perder, pois rapidamente surge a manipulação. Quem é formado para obedecer, se não é alertado para impedir a obediência ao ‘mal’ se este aparece mascarado de ‘bem’; também cometerá o ‘mal’, se a tal for instigado. Em muitos casos, o limiar entre o ‘bem e o mal’ é uma ténue linha mal demarcada. Despertemos, pois os moralismos irreflectidos rapidamente decaem na defesa de padrões totalitaristas pejados de ódio e de intolerância.
Na actualidade, também certos regimes democráticos nos inquietam, se dominados pela opinião pública, e se esta for forjada através da propaganda, e assim criarem um véu sofisticado de simulacros, onde a mentira e a verdade aparecem indistintas.
De facto, os sinais do tempo mostram que estamos nas mãos da opinião pública, que segue mais o parecer em detrimento do ser. E quando aí se procura o princípio de identidade entre ser e o parecer, não se verifica apenas a reiteração da verdade, mas antes o domínio unanimista, onde emerge a tentativa de anular a diversidade das formas de o ser humano se apresentar enquanto agente criativo.
Portanto, se um modelo de democracia apela à liberdade, e, no entanto, indevidamente torna-se paternalista, aconselhando: “Sê bom rapaz, transforma-te num conformista, anulando a tua identidade em favor do bom nome da mediania.” Então, para além de contraditória, estamos face a uma fraca democracia...
Ao estabelecer-se a médio-cracia, armadilha-se o caminho da busca da própria identidade, devido à imposição de um padrão politicamente correcta sobre o único modo de se ser – assombrando assim o fantasma da unanimidade para mil anos. Portanto, alertamos nós agora: Cuidado Zé-ninguém… que te podem impor o totalitarismo democrático da via única, transformando-te num homem sem qualidades. Sem te incentivarem ao esforço e ao trabalho. Apenas com estes recursos, criteriosamente exercidos, se obtém uma genuína transformação, que gera continuamente o progresso, abrindo novas modalidades ao ser humano para se revelar e valorizar.
Face ao exposto, termino com as palavras do poeta José Régio, respondendo às vozes doces que me dizem, segue-me e “Vem por aqui (…)
Não sei por onde vou,
não sei para onde vou,
só sei que não vou por ai.”
Nesta temática crítica, a arte cumpre integralmente a sua função, pois para lá de encantar também veio desassossegar e despertar. Reconheço, enfim, ao Sérgio Amaral o pretexto que nos deu com esta sua grandiosa exposição artística, para reflectirmos acerca de algumas das colossais inquietações do nosso tempo.
Carlos Alfredo Couto Amaral
A exposição de pintura do meu irmão
ResponderEliminar(Sérgio Amaral)
tem o título de "SEGUE-ME"