quinta-feira, 1 de abril de 2010

Língua portuguesa e filosofia poética

A POÉTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA COMO IDENTIDADE UNIVERSAL

Convidado para o “encontro de poetas do mundo”, indicaram-me o tema da Identidade e da Universalidade. A partir do qual irei abordar as relações da poesia com a filosofia no mundo da língua portuguesa, desconstruindo alguns mitos nacionais.

O universal representa uma tendência de unificação crescente por aglutinação do múltiplo no UNO. Segundo Sponville, “o universo para o espírito é a única interioridade verdadeira” (1). Reflecte as velhas questões filosóficas, e também a ideia moderna da globalização.

Se a Globalização foi iniciada com a viagem de Vasco da Gama à Índia e com a circum-navegação de Fernão de Magalhães, então, a nossa tarefa deve suportar uma exigência, no mínimo, como a de Álvaro de Campos: “Eu da raça dos descobridores, desprezo o que seja menos que descobrir um mundo” (2).

Do projecto dos descobrimentos ficou na nossa cultura um modo específico de relação com o resto do mundo, assim como a globalidade da língua; e das representações simbólicas patentes na esfera armilar da bandeira nacional.

Os problemas culturais ganham vulto, quando os poetas e os filósofos os enfrentam, como aconteceu com Camões, Fernando Pessoa, Padre António Vieira, Teixeira de Pascoais, Agostinho da Silva, Eduardo Lourenço. Desembarcamos com eles na utópica missão portuguesa através do mundo…

Refere Fernando Pessoa: “A arte é a aspiração do indivíduo a ser universal” (3), quanto ao símbolo da Identidade revela um modo de ser, que se funde numa forma de sentir própria. Podemos dizer que, na nossa história encontramos a chave, para passar da identidade individual ao sentimento universal. Descobrimos um código de comunicação alternativo face ao silêncio entre povos e continentes desconhecidos.

O poeta procura o sentido encantador num mundo por fazer; e, por isso, é livre de o inventar. Pois, ele é o criador imaginativo de mundos. Se Camões, o patrono da pátria, se dá conta de um mundo vasto, onde a diáspora nacional foi ao encontro da própria identidade, tomando o leme do mundo como se todo o mar fosse português.

Fomos o primeiro povo europeu a ter contactos interculturais à escala global. E os poetas e os cronistas acompanharam os actos e registaram nas epopeias – que o diga a Carta de Pêro Vaz de Caminha.

Se o caminho actual é da globalização, há algum tempo atrás, pensavam uns imperialistas na pretensa hegemonia da língua inglesa, quase considerado o novo esperanto universal. Mas a realidade recente revela que a língua mais falada passou a ser o castelhano. E, o companheiro ibérico, o português, continua em crescente vigor na escala planetária. Cuidemos então, sem preconceitos nem inibições, da universalização das obras literárias que brotem na autêntica pátria planetária, a nossa língua.

Mas a poesia e a cultural não podem viver de clichés, por muito belos que sejam, como “a pátria da língua portuguesa” de Pessoa. Na dialéctica das transformações, a identidade constrói-se a cada momento, sem negar a história. Pois se não se pode esquecer o presente, também não se deve obstruir o futuro.

Nesta dinâmica, a identidade torna-se uma construção interminável que o poeta auxilia a inventar. Com originalidade, pode estabelecer-se uma relação dialéctica da poesia com o mundo, que a língua espelha, manobrando como motor de busca da novidade, pois ela atravessa o poeta. Logo, é inevitável que sejam espelhos paralelos, reflectindo infinitamente a imagem de um e do outro.

Estamos convictos, a língua portuguesa representa um mapa mundi, bem vivo, que conserva os elos com as diferentes culturas. Miremos assim a estrutura deste Atlas da comunicação. Nele encontramos do grego ao latim, ao árabe e africano, até ao asiático e ameríndio. Pois a língua portuguesa foi enriquecida, através do encontro de culturas que as camadas sucessivas da história registaram.

A língua é o depositário de um pensamento próprio, onde algo está sempre a pensar. E, o que pensa a nossa língua, antes de mais, são os seus símbolos. Como os casos: das descobertas; da saudade; da busca do paraíso perdido; do quinto império espiritual; do ciclo nostálgico da partida e do retorno; do permanente desejo do que é novo; e, da renovação através do encontro com o desconhecido.

O universal está ainda a caminho. E, perguntamos com Agostinho da Silva, se a pátria está por cumprir no seu verdadeiro desígnio, que corresponderia à unificação das culturas e das nações que falam o português. Não apregoamos a hegemonia no plano político, mas a efectiva melhoria das relações culturais entre os povos da lusofonia. Também Paulo Borges fala de “Uma pátria trans - patriótica, que realize e cumpra a sua superior possibilidade no encaminhamento das consciências individuais para a realização do bem universal” (4).

Pensamos que, a pátria ao confrontar-se com o universal nasce para o mundo, retratado no modo camoniano de dar mundos ao mundo. Alertemos, no entanto, que um perigo da universalidade provém da associação a actos imperialistas de poder e de domínio, gerando o mal-estar, a luta e o inevitável contradomínio.

Se o colonialismo foi uma das faces dos encontros; a descolonização foi outra face inevitável desse processo. Embora, na independência, se estabeleça por vezes o corte na comunicação. É então necessário dar a palavra aos poetas da lusofonia, que cantem o heroísmo da independência, da liberdade, das redescobertas e da respectiva identidade em construção – mas também da reconciliação.

É, por isso que, na poesia em língua portuguesa, no fundo, a pátria comum aos poetas aqui representados, procuramos uma unidade e um tributo. Camões na Ilha dos Amores mostra o paraíso na terra aos heróis das descobertas. Eis o quinto império, o domínio da metafísica sobre a física, paradoxalmente quando as paixões carnais se tornam licenciosas. Sem darem conta, o corpo falava mais alto, iniciando-se o ciclo da miscigenação. Sem preconceitos, identificamos outro traço da nossa universidade, nesta unidade dos povos em torno de um desejo de amor e celebração, que não se ficou apenas em loas sublimes.

Se outros povos escolheram a razão e suas capacidades e restrições enquanto identidade; Portugal achou um modo de comunicação com diferentes gentes, ao eleger como elo a ratio emocional, que a poesia contém – mais eficaz a estabelecer pontes e relações interculturais. Aqui, também Pessoa revela a convicção de “o português ser o único povo cosmopolita nato” (5).

Face ao elevado auto conceito nacional, a crítica de Eduardo Lourenço, antevê no magistral Labirinto da Saudade, que “o abismo persistente entre a nossa realidade e a imagem hipertrofiada com que sempre temos vivido a nossa vida imaginária” (6). Asseverando que, “Poucos países fabricaram de si mesmos uma imagem tão idílica como Portugal” (7). Ou, ao contrário, passa-se ao outro pólo oposto do miserabilismo. Embora na realidade, nas relações internacionais, se não representamos o melhor papel, também não fizemos a pior figura.

Viremos a página, voltando à filosofia, na temática do universal e da identidade, com o pensamento de Hegel. Dialecticamente só há universal a partir da identidade; e por seu lado, a identidade tem que descobrir em si a universalidade. Ou seja, no universal tudo o que é individual deve achar a sua superação e síntese final. Encontramos na poesia uma apetência para gerar soluções no imaginário numa alternativa à vigília da consciência racional, que por vezes só complica, por em vez de abrir portas, criar muros intransponíveis…

Para o mesmo Hegel, o espírito absoluto encontrou na arte em geral, e na poesia em particular, uma superação do mitológico e a realização transcendente de uma etapa do espírito absoluto. O filósofo idealista apregoa, que depois de atingir o zénite com Shakespeare [e Camões] o espírito poético morreu, para dar lugar à filosofia racional, enquanto domínio do espírito lógico e conceptual.

Não certificamos esse óbito, nem acreditamos que o espírito absoluto e universal se realizar sacrificando as identidades individuais. Deve-se antes com a libertação total franquear um nível mais elevado, identificado à relação ética, que reconheça o outro, dando lugar à confraternização na criação artística.

Na poética brota o genuíno grito de liberdade de cada povo e na respectiva nacionalidade, conciliando os indivíduos numa identidade debaixo dos mesmos sentimentos e símbolos. No caso português, o exemplo da esfera armilar na bandeira dá conta do sentido de pátria voltada para o universal.

Pensamos ainda que, na autenticidade e no amor, se originam sorrisos e mundos superiores. Declarava Schiller, a partir da educação estética criaremos um mundo melhor, desenvolvendo a sensibilidade dos povos e limitando os ímpetos cegos da barbárie.

Em contradição, o século XX mostrou que, sociedades intituladas cultas, e com bom gosto artístico, tocaram a marcha fúnebre com o amplificador da metralha, e cantaram salmos nos salões da gasificação do genocídio universal.

Na desconstrução pós-moderna alerta-se que depois do cataclismo de Auschwitz a poesia lírica está definitivamente morta. A partir daí o escritor deve colocar a arte ao serviço da vigilância crítica, em vez de evocar as flores, as abelhas e as divindades fugazes. Posto isso, a poesia passa a ser também feita de tripas. Enquanto, a existência quotidiana passa a transpirar no acto criador, e substitui o amor pela sexualidade; e, o harmonioso pelo panfletário.

O universal passa a considerar o todo que é a existência humana, através do reconhecimento dos actos poéticos com que a vida quotidiana está investida. Sem nos embalarmos no sonho da Bela Adormecida. Mas, ao contrário, devemos beber no cálice de fel, de sangue e de lágrimas.
Recapitulando, entendemos as diversidades que foram ignoradas, pela acção da colonização. Nas vias comunicantes, de ora avante, devemos reconhecer a peculiaridade em cada canto onde se fala o português. Sem deixar de comunicar interculturalmente; e, sem gerar espaços apenas em branco que provoquem a conversa acabada...

Para evitar o defeito, destaquemos os criadores, que desenvolvem a expressão da língua na literatura e na poesia. Construindo, a partir deste encontro de poetas do mundo, um trilho de divulgação, que passe pela publicação de novos talentos, assim como, na organização de outros encontros e congressos. E, sem esquecer, o incentivo das instituições e fundações que venham fomentar tais projectos.

Em súmula, estabelecemos pontes com povos que connosco compartilham a história, e assim ultrapassamos quimeras ideais e medos tenebrosos. Feitas as pazes com o passado; no dobrara do novo cabo da Boa Esperança, exige-se o estabelecimento de relações permanentes com os povos da lusofonia, onde o maior veículo é a arte poética, que nos volta a identificar em torno do mesmo foco que é a língua de Camões.

Carlos Alfredo Couto Amaral


NOTAS:
1. André Comte – SPOVILLE, Dicionário Filosófico, São Paulo, Martins Fontes, 2003, p 610.
2. Fernando PESSOA, Sensacionalismo e outros Ismos, p259.
3. PESSOA, Op. Cit. 180.
4. Paulo BORGES, Uma Visão Armilar do Mundo, Lisboa, Verbo, 2010, p. 218.
5. PESSOA, Op. Cit. 218.
6. Eduardo LOURENÇO, Labirintos da Saudade, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1982, p. 30.
7. LOURENÇO, Op. Cit. p. 79.

1 comentário:

  1. Você acha que a poesia pode mudar o mundo???

    Poesia e Evolução Humana
    Ensaio sobre a importância da poesia para a humanidade
    Autor: Orácio Felipe
    Descrição :
    Qual a contribuição da Poesia para a evolução da humanidade? Numa rápida abordagem conversamos com os leitores sobre o significado e importância da poesia para "derreter" as algemas que muitas vezes nos aprisionam. A poesia é também uma manifestação simbólica, que revela o universo do autor mas também influi no universo do leitor, proporcionando uma expansão da consciência. Em muitos casos leva até a revolução. Listando algumas poesias e músicas evidenciamos momentos onde a evolução cultural beirou a revolução e libertou. Quiçá pudéssemos alimentar nossos educandos com boa literatura desde tenra idade.

    www.clubedosautores.com.br

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