domingo, 4 de abril de 2010

Prefácio à obra ALQUIMIAS

Iniciando com um postulado dogmático, afirmamos que, nunca um poeta deveria escrever sobre outro. Já no seguinte, contradiríamos que, ninguém poderá apreciar mais um poeta do que outro. Isto tudo para justificar o embaraço em que nos colocaram com o convite para prefaciar a antologia da obra do Ângelo Rodrigues.

Iniciemos o nosso exame a partir do estilo. Numa escrita versátil ele restaura com graça o Dadaísmo, na conversa da treta e no malabarismo da tanga da psicanálise de sofá, pondo tudo a nu, com o erotismo a saltitar de palavra em palavra numa bateria de flashes mentais.

Diz o nosso poeta que, a “Deolinda foi à missa para redimir alguns pecados e arranjar espaço para outros”(Na tanga e da tanga ). A partir do “amor-alismo” apresenta a libido onírica como a seiva da poesia. Pois, a beleza da palavra traz o gozo e a lama fétida da existência. Assim nos apresenta paradoxalmente o ser humano no seu esplendor e na sua miséria, seguindo aos tropeções o caminho para a transcendência.

Se do caos emerge a ordem do espírito, então há que cuidar das mentes combalidas entre o vórtice do êxtase e da náusea. Na evocação do caos, o Ângelo pretende colocar em movimento o processo ex-purgativo do mal-estar, como se no disparate dito a alma se purificasse, ganhando consciência de um sentido exótico das coisas.
Ou seja, o mundo social reflecte o cosmos mental, desconexo, palavroso, a roçar o deboche. Como se nenhum móbil orientasse a mente, e o mundo já não tivesse amanhã, e o ser caísse no incontornável buraco negro do nada.

Face à crescente contaminação patológica, a terapia virá expurgar o excesso. Por isso, o poeta vai dizendo o que o delicia e o atormenta, e assim goza e liberta a mente. Enquanto, na leitura o espectador também vai sentindo o alívio, descartando paulatinamente o mal-estar com que lhe fizeram engolir a civilização.
Com cuidado, sempre vai afirmando que nos encontramos num mundo em crise de valores, por nos arredarmos cada vez mais da forma poética de habitar o mundo.
No percurso das diferentes modalidades da escrita, o nosso autor, reflecte sobre o ser em estilo aforístico, através de um género de pensamento, que quer dizer muito em paradoxos de poucas palavras.

Posto isto, quem não desenvolve a atitude poética sofre o empalhamento na ociosa normalidade, pois, “A crise também resulta da falta de atitude poética” (Dos Poetas). Para superar o défice, adopta o preceito de ir além do autoconhecimento através da dinâmica do “Excede-te a ti mesmo” (Dos Poetas).

O autor ao reproduzir a contraposição deste mundo material face à metafísica estética constata ironicamente que, “o seu reino não é deste mundo” (in Dos Poetas). Identifica-se mais com o mundo ideal da imaginação, da contradição, da luta, da esperança cega – do sol que nascerá como produto da criação poética.
Para os devidos efeitos, certa Pessoa afirmou que, o poeta é um fingidor, isto é, um dissimulado, “um cão da verdade que finge dormir para não ser posto na rua” (Novas Alquimias).

Franqueemos então com escolta canina o pórtico da escrita alquímica que aparenta ser uma arte sem bússola, sem Deus; como se o demo andasse à solta, revirando os cadinhos das pequenas sujeiras e as confundisse com as boas intenções.
Mas, em paradoxal acto místico, vai caindo na ânsia da transcendência como no vislumbre da visitação do divino à beira das margens da morte, onde o nada se reduz ao absurdo. Tudo parece convencionar um contraditório silogismo existencial:
“Bom é viver”
“Morrer é bom”
“Logo, morrer é viver”.

Estamos convictos que, como freudiano, o Ângelo foi marcado pela pendular oscilação entre o Eros e o Thanatos, isto é, o amor erótico e a morte. Não obstante, não seguirá a posição ortodoxa da vitória do princípio da realidade; ao invés, no nosso poeta triunfa o princípio do prazer. Nesse fim do começo, a morte será o grande orgasmo que liberta o espírito para a dimensão metafísica.

Subindo agora ao palanque das ideias filosóficas, dispara rajadas de palavras veementes. Mas com humor, sensibilidade, ironia (e uns palavrões à mistura), vai arrasando o mundo do falso saber e da mentira que se esqueceu do elementar significado da existência.

Em alternativa, propõe que seja dominante a sexualidade, o desejo, o pensamento livre. Muito embora, o percurso de acesso a essas instâncias não se faça na seriedade da reflexão lógica, mas ao contrário, é restabelecido no jogo, na brincadeira e na alegria indomável de viver.

Na verdade, a filosofia poética do Ângelo quer refazer a unidade perdida, o ovo primordial. Para isso, reconcilia os opostos, colocando Nietzsche a conviver com Platão e Freud a analisar Santo Agostinho. Nesta tendência passa-se do Holismo ao ecletismo, onde tudo é possível, inclusive a coexistência do fundamento intelectual com a dinâmica da emoção.

Entretanto, os filósofos perdem o verniz de santos quedos no nicho do pensamento, e, se necessário transfiguram-se em Arlequim de opereta bufa no argumento de uma comédia saturnal onde as bacantes refazem o cortejo dionisíaco. Face ao exposto, quem disse que a filosofia não era cómica, foi certamente por não entender os seus fundamentos irónicos…

Em súmula, percorrer em corrupio a escrita do Ângelo Rodrigues é uma aventura, onde se comunga com a presença iniciática do ritmo desconcertante das palavras que, descortinam razões secretas, rebuscando riquezas e banalidades escondidas no armário do inconsciente humano.

Carlos Amaral

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