NATUREZA E FUNÇÃO DO SÍMBOLO NA METAFÍSICA ESTÉTICA DO JOVEM NIETZSCHE por Carlos Alfredo do Couto Amaral Dissertação de Mestrado em Filosofia, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Lisboa, 2000, 205 páginas.
1. Nesta dissertação analisámos o conceito de símbolo tal como o jovem Nietzsche o tratou entre os anos de 1871 a 1873, correspondendo à época de O Nascimento da Tragédia. Em termos gerais, Nietzsche abordou a problemática da função simbólica a partir do mito e da arte como domínios integrantes duma tarefa hermenêutica. A este propósito enunciamos o seu enraizamento num período da filosofia que foi dos mais marcados pela simbólica, referimo-nos concretamente ao romantismo alemão.
Desde o início que destacamos na conceção de Nietzsche a transposição como a categoria fundamental do símbolo, a qual indica o transporte e a mudança de uma imagem e de um significado para outro contexto. O símbolo é assim apresentado como um elemento essencial da comunicação que relaciona as diferentes dimensões em jogo na estética. Para este filósofo, o símbolo e a metáfora equivalem-se parcialmente enquanto processos artísticos que estabelecem relações inventivas. De forma implícita Nietzsche mostra-nos que, apesar de existirem traços comuns entre o símbolo e a metáfora, tal não é suficiente para os confundir e identificar, pois o símbolo radica na profundidade do inconsciente musical, enquanto a metáfora se processa à medida da dimensão da linguagem poética, a qual em último caso tem uma matriz literária. Neste sentido, o símbolo pretende estar próximo dos fluxos da vida.
Não reduzimos o símbolo à metáfora, pois a música tem um papel essencial na metafísica estética de Nietzsche sem se subordinar à imagem. A relação da imagem com o símbolo corresponde à intuição que leva o sujeito a conceber a presença do objeto. A força da fantasia vem desempenhar aqui a função de um pensamento que se desenvolve através de associações livres das imagens. Nesta sequência, Nietzsche trata a imaginação como a faculdade simbólica por excelência, que estabelece a unidade entre as diferentes imagens através de conjeturas audaciosas. Na verdade, o sujeito ao fantasiar estabelece comparações que transpõem os significados para domínios desconhecidos, como acontece com a máscara, a qual revela e esconde a força da vontade, transfigurando completamente a realidade em causa.
Entretanto, pensa Nietzsche que o corpo concentra e transfigura através da simbólica da dança e do bailado as características fundamentais da essência da natureza no que se refere à força e à energia. A força e a potência aqui retratadas permitem compreender a própria transposição e transfiguração simbólica da arte. O nosso filósofo pensa que a partir da relação dialéctica entre a força e o significado (inerentes ao símbolo) podemos compreender as forças da natureza e o modo como estas transitam para a arte.
2. Ao investigar a origem do símbolo na força matricial que o sustenta, Nietzsche detecta que existe um fundo inconsciente orgânico e 'sapiencial' que é necessário tornar consciente. Apesar disso, não existe para ele uma ponte segura para a transposição deste elemento para aquele, pois o nível inconsciente não se deixa submeter aos princípios formais da lógica que são a panaceia onde se esconde a fragilidade do racionalismo abstracto.
Em contrapartida, considera Nietzsche que os impulsos cegos do organismo são transpostos de modo simbólico, primeiramente para as vivências sentimentais e depois para as actividades culturais; ou seja, o inconsciente é a fonte energética do processo simbólico. Identifica ele nessa potência subterrânea uma torrente que atravessando os sentimentos se constituem como referenciais semânticos com a capacidade de produzirem novos símbolos.
Na perspectiva do nosso filósofo todo este processo é indirectamente controlado pela vontade; e, como se sabe, a categoria da vontade no jovem Nietzsche depende da filosofia de Schopenhauer. Com efeito, ambos os filósofos concebem o ser e o mundo como entidades dinâmicas, pensando que o mundo é uma representação e manifestação da vontade. Implicitamente o génio aparece aqui como a entidade "subjetiva" que sente a força da vontade a pensar com ele acerca da produção das novas formas; o que significa que o génio é o culminar dessa orgânica da vontade, procurando dominar a 'Força da Vida' para a partir desse fundo inconsciente poder criar as formas simbólicas, as formas míticas, as formas poéticas.
3. No desenvolvimento de tal aspecto, o mito e a arte desempenham em Nietzsche uma função simbólica acrescida na medida em que os utiliza, altera e recria como narrativas e ilustrações do seu próprio modo de pensar. Logo ao entender o que é essencial no pensamento deste filósofo, convertemo-nos em intérpretes dos seus mitos e dos respectivos símbolos artísticos. No entanto, se já vimos como nascem os símbolos, agora convém observar como é que eles desaparecem.
No prosseguimento dos românticos, o jovem Nietzsche critica a ausência das crenças míticas no que se refere à modernidade, revelando a decadência que é provocada pela racionalidade, a qual tudo quer explicar e desvendar, banindo o espaço da incerteza, da dúvida e do espanto. O mesmo é dizer que o "Iluminismo" ['Aufklärung'], ao projetar uma compreensão das crenças, dos sentimentos e dos símbolos acaba por os destruir. Na perspectiva de Nietzsche, o desaparecimento dos símbolos míticos leva à uniformização mental e à falência da civilização moderna que "perdeu a pátria mítica" por se ter desenraizado culturalmente das forças criadoras da vida. Ao diagnosticar este ambiente de decadência, Nietzsche considera, no entanto, a possibilidade duma regeneração por meio do retorno nostálgico ao mítico, a partir de um diálogo vivo entre a música e a filosofia. Tudo isto porque a música é a área cultural em que os símbolos ainda vivem, constituindo-se assim como o centro regenerador da criação e do pensamento. Aqui recorre-se à inspiração de Wagner, na medida em que este ousou pensar por meio de acontecimentos visíveis e sensíveis através de um envolvimento mítico. Considera Nietzsche que em Tristão e Isolda e na trilogia do Anel dos Nibelungos encontramos um género de narrativa dramática que desenvolve as ideias metafísicas sob a forma simbólica. A música constitui desta forma a nova inteligibilidade do pensamento sem negar a sensibilidade, permitindo refletir sobre a arte a partir dela mesma. Pensa Nietzsche que a música de Wagner é um mote para a reflexão, possibilitando uma compreensão metafísica mais elevada do que qualquer filosofia já conseguiu. Como corolário, Nietzsche considera que a música é o espírito que origina a tragédia, participando na génese do coro (que é o elemento da união mítica entre a música e a palavra). Deste modo, o mito é o elemento comum que permite estabelecer a mediação entre a tragédia grega e o drama musical wagneriano.
Posto isto, pretende Nietzsche uma fundamentação mais recuada, procurando na Grécia Arcaica as condições ideais da formação dos mitos da tragédia; é neste sentido que analisámos um dos mitos, entre outros, a que ele mais recorre. Trata-se com efeito da história de Édipo, que é o símbolo dionisíaco do homem trágico, encontrando-se em luta e sofrimento face à interpretação do seu destino. Essa figura mítica é concebida por Nietzsche de modo ambivalente, considerando que Édipo é uma máscara do sofrimento dionisíaco, mas também é o "símbolo da ciência", por interpretar os mistérios mais profundos da natureza humana. Notámos que Édipo escuta vaticínios horríveis acerca de si próprio; no entanto, à medida que se vai descobrindo, o seu próprio destino irracional é realizado. Este herói interpretou o enigma da Esfinge e, ao revelar-lhe o segredo desmistificou-a, matando-a com as armas da razão. No fundo, Édipo representa a união do pensamento mítico com a emergência de uma reflexão simbólica e filosófica, por se apresentar como o decifrador dos enigmas; todavia, apenas aquele que está na posse da 'ciência' da interpretação dos símbolos pode decifrar o enigma com verdade. Neste caso a 'adivinha' é apresentada pela Esfinge, que é a figura por excelência da razão enigmática.
4. Em analogia com esta conceção, Nietzsche apresenta Apolo como o símbolo da ilusão, do sonho e também da adivinhação. Torna-se deste modo evidente que Apolo se identifica com Édipo, por este herói e aquele deus partilharem uma faculdade oculta. Já na mitologia grega Apolo era apresentado como o deus do oráculo que possuía os poderes da adivinhação do futuro. Com efeito, ele representava uma modalidade da razão que tinha por finalidade decifrar os mistérios. Em contraposição a Apolo, considerámos que Nietzsche aborda a figura de Dionisos como o símbolo dilecto do seu próprio modo de pensar. Através desta divindade o filósofo trágico representa o êxtase da embriaguez, o excesso, a criatividade, a paixão sexual e as forças naturais da vontade.
Pretende Nietzsche compreender as forças que estão na origem dos símbolos e das obras de arte, apresentando o dionisíaco e o apolíneo como paradigma da relação dialéctica de luta e de união dos opostos. As noções de conflito e harmonia dos opostos procuram dar respostas às confrontações entre as entidades polarizadas, tanto no plano natural, como no plano simbólico e metafísico. Deste modo, o conflito retrata a dissonância e o sofrimento tal como é abordado na obra trágica. Teve Nietzsche a intuição de que na arte existe a comunicabilidade entre os diferentes níveis da realidade, descrevendo-os através da transposição da linguagem não figurativa (dionisíaca) para a linguagem figurativa (apolínea). Esses elementos diversos ora se unem, ora entram em litígio estimulando a produção das novas obras. De facto, o acto criador espelha e perpetua o conflito - Dionisos avança com a força desmedida que Apolo equilibra através do saber configurado!-. A tragédia ática é precisamente o resultado da conciliação entre essas forças antagónicas. Verifica Nietzsche que existe na tragédia uma forma de criatividade que leva à harmonização das duas figuras simbólicas, de tal modo que as relações complexas dos princípios apolíneo e dionisíaco podem ser traduzidas numa aliança de recíprocas conversões linguísticas, que identificam a comunicação ontológica e estética.
Enfim, este processo 'dialéctico' representa a transposição criativa no qual a informe vontade dionisíaca se manifesta na linguagem da forma teórica apolínea, tornando fecundo assim o casamento entre estes princípios opostos. Nietzsche sublinha, contudo, que a conciliação instintiva dos contrários se gera nos abismos da razão inconsciente, revelando uma cisão ontológica, que no plano biológico é traduzido pela luta e atração entre os sexos. Em suma, o nosso filósofo critica a racionalidade fundada na lógica abstracta, mas, em contrapartida, defende uma racionalidade que comporta as forças da vontade na sua transformação e contradição. Trata-se de uma razão viva que é percorrida e animada pelos símbolos criadores da natureza, do mito e da arte. O que significa que o problema do símbolo traduz as diferentes formas da razão orgânica se apresentar e comunicar, pois através do processo transpositivo ela estabelece a unidade no seio da metafísica estética. Enfim, pretendeu Nietzsche desenvolver um pensamento que estivesse ao serviço da renovação civilizacional, considerando que os símbolos morrem se não desenvolvem a capacidade da constante criação dos seus significados. Daí o filósofo da tragédia ter sido o arauto da renovação que ainda está em curso, criticando na modernidade a desvitalização e a morte dos significados simbólicos.
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